"A RESISTÊNCIA NEGRA É A MATRIZ DO QUE QUER QUE VENHAMOS A REALIZAR COMO COLETIVIDADE." EDSON CARDOSO
Reflexões
Do racismo cordial ao genocídio simbólico
Em setembro de 2012, após a chacina de seis jovens pretos e pardos em Mesquita, na Baixada Fluminense, o jornal “O Globo” (edição de 13.09.2012, p. 18) admitiu em editorial, cujo título era “Está em curso um quase genocídio contra jovens”, que “A ideia de o Brasil ser um país de população de baixa idade está sendo mudada pela própria dinâmica demográfica e também pela força das armas”.
Com o uso do advérbio (quase) o editorial sinalizava que estava realizando, a contragosto, um movimento de aproximação. Na sessão da Câmara na última quarta-feira (15.07.2015), durante a leitura do relatório final da CPI de Homicídios de Jovens Negros e Pobres, o reconhecimento da palavra genocídio se fez com os mesmos constrangimentos e cautelas do editorial de “O Globo”, que omitia também, por supuesto, a cor dos jovens assassinados.
A relatora da CPI, deputada Rosângela Gomes (PRB-RJ), disse que foi bastante questionada nos corredores, a respeito do emprego de termos tais como racismo e genocídio. Termos estes considerados muito fortes pelos sensíveis deputados que a assediavam nos corredores. Quero crer que lhe foi sugerido um pouco menos, o quase da fórmula de “O Globo”.
Até mesmo porque o quase parece definir nossa especificidade histórica, que sempre modificou para menos o que presumivelmente apareceria em sua plenitude em outros países. Sempre tivemos, por essa leitura, menos racismo do que os outros. A atenuação alcançou seu grau máximo com o emprego inusitado do adjetivo “cordial”. Aqui alcançamos a perfeição ideológica, ninguém poderá negar isso, com a expressão “racismo cordial”. O adjetivo não exatamente determina o substantivo, mas o subordina e lhe extrai as entranhas desumanizadoras. Lembro-me das lições de minha infância remota: “o adjetivo modifica o substantivo”. Ah, criança, não queira saber quanto!
Aplicando as mesmas regras de transformação, oriundas de nossas especificidades históricas, a leitura do relatório da CPI da Câmara revelou ao mundo o “genocídio simbólico”!
Antes da votação do relatório, a deputada Mariana Carvalho (PSDB-RO) externou, no que foi seguida por muitos outros companheiros de CPI, as condições de validação do termo genocídio. Em confrontação com sua dimensão real e material (“muito forte”), o temo genocídio se atenuava ali e adquiria uma conotação “simbólica”, e era essa dimensão que ela e seus colegas se predispunham a aprovar.
Redimido pelo adjetivo, o substantivo genocídio acabou causando menos frisson que “gênero” e “orientação sexual”, varridos inapelavelmente do relatório. Na barganha, a homofobia de pastores, delegados e militares, alarmada ao extremo, acabou dando passagem ao “genocídio simbólico”, considerado um mal menor.
A leitura do relatório firmou também, ao que parece, nossa disposição de prolongarmos indefinidamente a busca por arranjos institucionais, supostamente indispensáveis para por fim ao assassinato de jovens negros. Nesse debate, inclinamo-nos a perseguir o infinito. No entanto, projeções de PEC”s, comissões e fundos não conseguem mais nem mesmo criar um horizonte de expectativas, ainda que rebaixadas.
Sobre o alcance dos pronunciamentos e debates travados no interior da comissão, mais uma vez os meios de comunicação se defrontaram com questões que afetam diretamente a população negra e fizeram suas opções. Nenhum veículo da grande mídia noticiou os trabalhos da CPI, nem as conclusões de seu relatório.
Compare a reação da mídia norte-americana aos eventos recentes envolvendo o assassinato de pessoas negras e seu repúdio pelas comunidades. Analise e compare também o impacto, o espaço e o prestígio do espaço ocupado pelo noticiário desses mesmos eventos e reações na mídia brasileira. Até o “Jornal Nacional” produz manchetes nas quais policiais atiram em pessoas negras. Nos Estados Unidos, claro.
Veículos que, por decisão de seus proprietários e editores, não aceitam noticiar a cor da vítima no Brasil, o fazem, contudo, na primeira página se o fato ocorreu em um país caracterizado como racista, em oposição ao nosso, reino de bem-aventurança etnicorracial. O editorial da Folha de S. Paulo (“Amarildo, 43”, em 03/08/2013) que se referiu a Amarildo, trucidado no Rio, é um clássico no gênero. Amarildo, para a Folha, era ajudante de pedreiro e tinha quarenta e três anos. Sua cor não era uma variável a ser levada em consideração, assim como sua extensa rede de familiares no morro, etc.
A questão central no tema do enfrentamento ao racismo e no fim das práticas homicidas contra a população negra foi, de todo modo, escamoteada ou subdimensionada na apresentação do relatório da CPI. A questão é: uma população ameaçada em sua continuidade pode reverter a tendência de extermínio sem tomar parte nas decisões que afetam sua vida de modo tão trágico e decisivo? Sem o fortalecimento de sua organização política, sem o empoderamento de suas comunidades?
Quais as medidas concretas sugeridas no relatório da CPI para estimular a participação da população negra? Reconhecemos suas entidades e instituições, suas pautas reivindicativas, fortalecemos as estruturas comunitárias com participação negra?
Se as soluções propostas não contarem efetivamente com a participação da população negra desde seu nascedouro, o extermínio começa nesse ato primeiro de exclusão política. Mal ou bem intencionado, não importa, ninguém deve ser porta-voz nem arrogar-se o papel de testemunha das atuais condições de sobrevivência da população negra. Assim, com essa usurpação rotineira, tanto à esquerda quanto à direita, nossa presença histórica transforma-se numa farsa e não há perspectivas de mudança nas estruturas de poder, das quais os negros são sumariamente excluídos. Há, portanto, evidências indiscutíveis, finalizado o trabalho da CPI, de que os assassinatos continuarão a acontecer impunemente em todo o país.
Edson Lopes Cardoso. Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo.
Começará em casa, se for verdadeira
Na edição do Jornal Nacional, rede Globo, da última sexta-feira (03.07.2015), William Bonner e Renata Vasconcelos informaram sobre agressões racistas que visaram a apresentadora do tempo, Maria Júlia Coutinho.
Bonner relatou que “cerca de 50 criminosos publicaram comentários racistas de maneira coordenada”, na própria página do JN. A data escolhida pelos agressores, uma daquelas surpresas escondidas no calendário de eventos, é o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial.
Para quem não é precavido, como eu não sou, um dia inesperado que, segundo consta em alguns espaços na internet, alude à legislação revogada pela Constituição de 1988 e trata-se de uma homenagem a Afonso Arinos!
Lembrei-me de Perelman: “É porque uma moeda está em circulação e possui um valor que se dão ao trabalho de fabricar moeda falsa”.
Embora o JN seja sempre suspeito para nós de urdir artifícios e enganos, o relato dos apresentadores soa verossímil: milhares de protestos vindos de todo o país, reações do Ministério Público no Rio, “que pediu à promotoria de Investigação Penal que acompanhe o caso com rigor”; em São Paulo, um promotor criminal “instaurou inquérito para apurar os crimes de racismo e injúria qualificada”.
Bonner informou ainda que a própria rede Globo “está estudando as medidas judiciais cabíveis”. A coisa está tão redonda que pode não levar a nada, você me entende? E pode apenas reforçar a argumentação dos que tratam o racismo como uma atitude “socialmente constrangedora”, sem maiores consequências. E pode sair daí um “caso exemplar”, comandado pela rede Globo? Um álibi extraordinariamente poderoso que o réu erguerá, doravante, diante de todos aqueles que o acusam?
Se o fantasma da lei Afonso Arinos fez uma aparição no calendário de lutas, o que mais não será possível nesse grande casarão mal-assombrado em que se transformou o país?
E Maria Júlia? Nós pudemos ouvi-la, instada por Bonner, na mesma edição do JN. E gostei da fala, contribuiu para vencer resistências e afastar a impressão de fingimento, de artifícios promotores de audiência. Num ambiente em que se procura, invariavelmente, suprimir qualquer referência positiva ao ativismo de Movimento Negro, Maria Júlia Coutinho fez rápida alusão ao perfil militante de seus pais. Eles lhe transmitiram orientações positivas no sentido de fortalecer a consciência de seus direitos:
Muita gente imaginou que eu estaria chorando pelos corredores, mas na verdade é o seguinte, gente: eu já lido com essa questão do preconceito desde que eu me entendo por gente. Claro que eu fico muito indignada, fico triste com isso, mas eu não esmoreço, não perco o ânimo, que eu acho que é isso que é o mais importante. Eu cresci numa família muito consciente, de pais militantes, que sempre me orientaram. Eu sei dos meus direitos. Acho importante, claro, essas medidas legais serem tomadas, até para evitar novos ataques a mim e a outras pessoas.
Tudo já era perceptível desde o início. Aqui estamos a léguas de distância das erupções efêmeras das “redes sociais”. A sua percepção de si mesma se fez em um mundo no qual se colocava a questão do preconceito. Tratar com ela, ocupar-se dela significa enfrentá-la e combatê-la desde sempre, sem esmorecer nem perder o ânimo.
Ela se fortaleceu no ambiente familiar, não em frente da TV, está claro isso. A “questão do preconceito” é, evidentemente, o modo como sou visto pelos outros. A questão do preconceito contra os negros envolve ataques e agressões diárias. A grade de programação das televisões, uma manifestação inequívoca de negação e rejeição, não contribuiu para fortalecer Maria Júlia..
Toda campanha antirracista é bem- vinda. Mas uma campanha conduzida pela Rede Globo não poderá, num passe de mágica, apagar a compreensão de que as virtudes da campanha serão avaliadas por sua aplicabilidade ao universo da própria Rede Globo.
Edson Lopes Cardoso. Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo.
O lenço
a Ângela Gomes
Carolina Nabuco, filha de Joaquim Nabuco, é autora de Oito Décadas, um livro de memórias, editado pela José Olympio em 1973.
Na primeira parte, que corresponde aos seus dez primeiros anos, de 1890 a 1900, a autora refere-se a uma ex-escrava, envelhecida, que continuou residindo em Maricá, no Rio de Janeiro, após a abolição, quando a fazenda que pertencia a seu avô materno, José Antônio Soares Ribeiro, Barão de Inohan, entrara em decadência.
O nome da ex-escrava é Henriqueta e deixemos falar Carolina:
Ela fora, nos tempos da escravatura, responsável pela enfermaria da senzala e pelo tratamento dos escravos doentes ou acidentados. Antes de receber esta incumbência esteve, moça ainda, mandada por seus senhores para ganhar prática, num hospital no Rio. Ouvi contar dela (e esse feito despertou-me ilimitada admiração) que salvara a vida de um homem estripado por um touro. Recolocara-lhe os intestinos, após lavá-los num córrego próximo, e recosera-lhe o ventre conforme as regras da cirurgia. Era uma preta alta e magra com um ar de respeitabilidade que as outras velhas não tinham, talvez por causa do lenço que trazia amarrado à cabeça, salvando-a do desmazelo dos cabelos selvagens ou encarapinhados das demais moradoras da ‘rua’ (chamavam assim à antiga rua da senzala). Henriqueta era mulher realizada pela vocação médica que era sua. Continuava ativa, servindo a vizinhança como parteira, doutora e distribuidora de ervas aptas às curas.
Antes de assumir a responsabilidade de cuidar de escravos doentes e acidentados, Henriqueta foi mandada a um hospital para treinamento. Não sabemos se as coisas se passaram exatamente nessa ordem, provavelmente não. O relato de um de seus feitos que chegara a Carolina beira o fantástico, mas atesta que o treinamento foi efetivamente assimilado (“conforme as regras da cirurgia”). Habilidade, conhecimento, atitude, iniciativa pessoal.
A narração de Carolina faz alusão a uma vocação médica, no exercício da qual Henriqueta se realiza. Há saberes adquiridos por Henriqueta, mais formalizados, de que Carolina conhece seguramente a fonte. Outros, ela intui vagamente e sua dimensão mais concreta aparece relacionada ao conhecimento de “ervas aptas à cura”. A escolha de Henriqueta para as funções que desempenha exclui a comunidade desde o início do relato, o que parece muito pouco provável.
Aqui temos uma brecha para percebermos que Carolina pode ignorar muito sobre Henriqueta, seus saberes e suas habilidades, e sobre as fontes de sua respeitabilidade. “Talvez por causa do lenço...”, pensa Carolina.
A origem da respeitabilidade de Henriqueta, de seu reconhecimento na comunidade, quando associada ao lenço que lhe cobre os cabelos pode soar pueril à primeira vista. No entanto, precisamos atentar para o uso no texto do verbo “salvar”.
Em sua primeira ocorrência, Henriqueta “salva” o homem que fora estripado pelo touro. Na segunda, Henriqueta “foi salva” pelo uso do lenço de parecer selvagem e desmazelada como outras mulheres da rua da senzala.
O alcance social, na visão de Carolina, do fato de Henriqueta esconder os cabelos “selvagens” é imenso, equiparável, em sua eficácia simbólica, ao gesto salvador de uma vida e que lhe provocara tanta admiração.
Carolina percebe assim que a cabeça coberta de Henriqueta significa algo relevante, mas inventa-lhe uma justificativa, moldada por seus próprios preconceitos. Mas, podemos conjeturar, ao contrário do que pensa Carolina, Henriqueta cobre a cabeça obedecendo a códigos e significados ritualísticos e/ou religiosos dentro de seu universo cultural? O lenço pode significar a existência de determinados procedimentos de iniciação por que passou Henriqueta, reconhecidos e legitimados pelos moradores da rua da senzala? Não sabemos. Entretanto, é seguro que Carolina lê o gesto dentro dos significados estritos que lhe dita o preconceito.
Deixamos falar Carolina, mas não podemos deixar falar Henriqueta. Podemos compartilhar a memória de Carolina, mas um silêncio recobre em nossa história pessoas, experiências, memórias. Um silêncio que desafia nossa própria sobrevivência. Não sobrevive um coletivo impedido de compartilhar sua própria experiência - a qual simplificada, distorcida, se transforma em alguma coisa completamente diferente: “Talvez por causa do lenço...”.
Edson Lopes Cardoso Jornalista e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo
"Menino-Homem"
Quero me ocupar das tuas inconsequências de menino arrogante
Dessa tua pretensão de ser inabalável
Te salvar da tua estupidez de trocar os estudos, pela pelada do fim da tarde
Quero conter essas urgências que te fazem roçar seu corpo nessa sua namorada tão sedenta quanto tu
Evitar ladainhas de crianças e títulos de avó que não me convêm
Mas hoje, comprando as velas que sopras amanhã, essas preocupações me soam como privilégio que não tenho
Seu corpo franzino de menino preto começa a ser transformado pelos hormônios e não posso evitar o que está por vir
A identidade registra 16 em poucas horas e me dizem que seu tempo está chegando ao fim..
Eu que já rezo para que as balas não atinjam seu corpo, para que as desavenças não te cruzem os caminhos, para que as fardas não te surpreendam numa emboscada qualquer, agora me ajoelho para que não te enjaulem antes da vida te dar uma chance de amadurecer, de errar, de se redimir
A verdade é que crescer é atividade de risco A tarefa é: ser salvos de nós mesmos Mas com seu titulo de menino revogado A vida deixa de ser jornada pra se tornar sina
Sina que renova em ti, as angústias do passado Com sons de navios, de correntes, de chibatas Sina que renova em mim, as misérias das lembranças De filhos roubados, separados, mutilados Sina que impõe a nós, a guerra como a única saída Por liberdade, por justiça, por amor
Por Ana Flauzina
Crédito: Friedemann Vogel/Getty Image
"Cala-te : quem reage, dança"
Ginástica mental. Uma operação complicada para o jovem ginasta: a aceitação pragmática da negação desumanizadora. Ângelo tinha que pensar, numa fração de segundo, que o filho do treinador (Marcos Goto) era parte do grupo e que sua carreira muito provavelmente dependia da reação à agressão racista. Quem reage, recebe o que Aranha, ex-goleiro do Santos, recebeu, todos sabem.
De um lado, o corpo negro do ginasta, de outro os sacos de lixo. Ou melhor, de um lado os corpos brancos dos ginastas, divertindo-se, e de outro o saco de lixo, Ângelo Assumpção.
Lixo, lixão, corpos negros, sacos de lixo – você não precisa estar ligado na CPI do extermínio de jovens negros para perceber que o corpo de Ângelo Assumpção acaba de ser lançado simbolicamente na vala, no lixão.
A ligação simbólica, nós aprendemos, se apoia na estrutura do real. As imagens e os símbolos da rejeição se interpenetram, cruzam-se e precisamos estar atentos aos significados do simbolismo que envolve a comparação feita pelos atletas da seleção brasileira de ginástica. Lugar de negro, principalmente na faixa etária de Ângelo Assumpção, é no lixão. Risos?
A mãe de Ângelo parece que falou alguma coisa. Ângelo não vai falar. Pelo menos, não o que nos interessa. Artur Nory, Felipe Arakawa e Henrique Flores já se desculparam pela “brincadeira”. Na dita brincadeira, os ginastas brancos reafirmaram sua superioridade diante de Ângelo e deixaram claro, também, através da linguagem e das atitudes, que Ângelo representa outro grupo, o do lixo. Procura sua turma, cai fora.
Entre nós é profunda a crença de que a discussão aberta e explícita do racismo deve ser evitada. Constrange e parece não promover avanços nem instituir novas práticas. O fato é que temos, de um lado, a “maldição da cor” e, de outro, temos esforços bem sucedidos para interditar o debate sobre racismo. Na rádio CBN, o bate-papo sobre racismo na seleção brasileira de ginástica olímpica (21.05.2015, programa “Hora de expediente”) levou um pouco mais de dois minutos e camuflou a palavra maldita.
Dan Stulbach referiu-se uma vez ao termo na expressão “...quanto está naturalizado este tipo de racismo na sociedade brasileira, tratado como brincadeira”. Naturalização nesse contexto significa que eventuais penas devem ser atenuadas. O racismo é apresentado como elemento da vida cotidiana – mas para inocentar as pessoas que discriminam. As práticas discriminatórias não seriam percebidas como violência extrema, porque passariam longe da consciência dos autores, pobres vítimas inocentes da “naturalização”. Há cinismo e astúcia na manobra.
No país que fuzila jovens negros sem piedade, as considerações de jornalistas sobre atos de discriminação racial e incitamento ao racismo praticados por jovens brancos (“meninos”, “rapazes”) valorizam a chamada pena “didática”, que seja “um exemplo para que não se repita mais”. Os rapazes vão ficar sem a merenda durante trinta dias.
E Ângelo Assumpção? Milton Jung da CBN disse que “muitas vezes o alvo das críticas acaba não reclamando, porque o fato de ele reclamar ou reagir contrariamente pode gerar uma exclusão daquele ambiente, e quando naquele ambiente a oportunidade que o esporte oferece é a de uma ascensão, etc., de um sonho que você realiza, e você acaba aceitando isso, não reagindo da maneira como você deveria talvez. Mas realmente é muito complexo esse processo”. Que “ambiente” esse, francamente. Releiam o que disse o Jung: críticas. Ângelo teria sido alvo de “críticas”. Na hipótese de reação, o tal “ambiente” fatalmente o excluirá. O que é exatamente complexo no processo? Que Ângelo não possa suportar a grande pressão do ambiente racista? A desumanização, a coisificação, a negação de suas possibilidades como atleta? O desafio gigantesco de alcançar êxito, numa sociedade cujos processos de dominação destinam-se a negar, manipular, conter e reprimir seu corpo?
Os atletas brancos foram punidos “didaticamente”. O modo como se divertem, o comportamento do grupo, comunica mais que indícios de que se sentem seguros de que compartilham valores e práticas: “outros pensam e agem como nós”.
Uma resistência furiosa com a divulgação do episódio, profundamente contrariada, produz o silêncio e a imobilidade. Os personagens foram todos blindados, o noticiário se esvaziou rapidamente. Silêncio, silêncio, silêncio. Ângelo Assumpção, não sei não, pode estar encerrando uma promissora carreira.
Edson Lopes Cardoso Jornalista e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo
“A moça do tempo”
Maria Júlia Coutinho é agora um nome nacional e já sabemos que ela prefere ser chamada de “Maju”. Sua presença vem contribuindo para descontrair o ambiente do “Jornal Nacional” na hora da previsão do tempo, de acordo com as “novas” estratégias de reconquista da audiência perdida. E o faz com segurança, numa televisão que impõe severas restrições à participação de pessoas negras.
Elas têm presença garantida na construção de cenários e ambientes, pedreiros, pintores, marceneiros, eletricistas, ou manicures e costureiras, iluminadores, etc. Quando o cenário está pronto e o programa começa, as pessoas de pele escura devem recolher-se. Mas nunca o fazem totalmente, sempre podemos vê-las aqui e ali ou pressentir sua presença.
Lembrem-se de Machado de Assis, descoberto a semana passada numa foto que documentou a missa campal em comemoração ao treze de maio. Recordemos uma cena de seu romance “Quincas Borba” (cap. 51), publicado em 1892.
O almoço já está servido, as personagens se dirigem à mesa e não vimos nada, sabemos que Sofia “apenas tomou um caldo”. Depois do almoço, Sofia, pensativa, ouve o rumor de pratos, o andar das escravas, e perdendo-se “em reflexões multiplicadas”, aborrecida e irritada por causa de episódio da véspera e da conversa com Palha, seu marido, vê, enquanto contempla a paisagem no jardim, “um pobre preto velho, que em frente à casa dela, trepava com dificuldade um pedaço de morro. As cautelas do preto buliam-lhe com os nervos”.
Acrescente-se que o narrador nos informou que a personagem tinha “ficado só”, após o almoço. O que não conta absolutamente para reduzir a solidão de Sofia é o fato de que a casa está cheia de escravos/as, os pretos estão em todo lugar e espalham-se pela paisagem.
Mas nós os veremos pelas frestas da narrativa, pelo resultado de atividades domésticas que garantem o conforto, a alimentação, etc.. Há indícios e registros dessa presença em todo o texto. Vejam também como a presença negra envolve os sentidos da personagem (paladar, audição, visão), e se faz presente nas associações simbólicas. Diante do assédio de Rubião, Palha, que lhe deve muito dinheiro, recomenda cautela a Sofia. A trajetória do casal de arrivistas e as cautelas necessárias de sua escalada social se materializam na paisagem através do esforço do preto velho.
Os mecanismos da narrativa no Brasil estabeleceram assim os fundamentos de uma apreensão refinada do país quase invisível habitado por negros.
Os jornalistas quando levantam da bancada principal do Jornal Nacional para interrogar Maria Júlia sobre as condições do tempo cruzam uma fronteira social. Como a interação com os negros se dá sempre de cima para baixo, pesa no diálogo inusitado o tom adocicado e paternalista. Acho que a história de “ela prefere ser chamada de Maju” entra também por aí.
Na entrevista que fez com a apresentadora Maria Júlia Coutinho (FSP 16.05.2015, C8 Ilustrada), Lígia Mesquita, que assina a coluna “Outro Canal”, lhe fez a seguinte pergunta: “Você é uma das poucas jornalistas negras no ar. É importante estar no principal telejornal do país para isso mudar?”.
Maria Júlia respondeu que uma andorinha só não faz verão e que o fardo é difícil de suportar: “não pode demorar tanto tempo pra ter outra Glória Maria, outro Heraldo Pereira”.
As pessoas, como se sabe, estão intimamente vinculadas a um conjunto de experiências de que são o resultado. O conjunto, extraordinariamente rico e diversificado, da experiência de africanos e seus descendentes no Brasil não interessa aos meios de comunicação (como não interessa aos políticos, etc.). Decorre daí, como bem disse Stuart Hall, esta presença pouca e dispersa, esta visibilidade controlada e regulada.
A demora a que se refere Maria Júlia ( Glória, Heraldo e ela mesma) é a expressão de uma regulação, movimentos demarcados por uma estratégia bem sucedida.
Edson Lopes Cardoso. Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo.
Fonte da foto: Agência Câmara
“O terror nosso de cada dia”
A boa notícia é que se vão multiplicando em diversos pontos do país as comissões parlamentares para investigar o assassinato de jovens negros (ou de jovens negros e pobres). Câmara e Senado e diversas Assembleias estaduais tomam iniciativas semelhantes.
É importante para as ciências políticas e sociais que possamos compreender em que circunstâncias a classe política, como bem o disse um deputado, não quer mais “assistir a um genocídio contra a juventude negra” e se disponha a enfrentar o tema espinhoso e bexiguento.
Será mesmo o fim do indecoroso voyeurismo político? Duvida-se, em função dos antecedentes, de que seja uma investigação de substância. Há pessimistas mais radicais que argumentam que a coisa chegou a tal ponto que não restaria aos políticos, para evitar o tema, senão tomá-lo para si, acolhê-lo ainda que de um modo enviesado.
Mas não é apenas a tradicional omissão da classe política que inspira nossas atitudes de desconfiança. Até porque os políticos mantiveram-se precavidamente distante do tema porque os assassinatos em massa sempre contaram com amplo consenso social. Os jovens negros vêm sucumbindo, de fato, diante do imenso poder destrutivo de uma violência sancionada por segmentos expressivos da sociedade. Os políticos sabem disso e saltam fora.
Por que consentimos? É fundamental compreendermos isso, se quisermos avançar. O aniquilamento de nossa juventude vincula-se profundamente ao propósito, amplamente disseminado no conjunto das práticas sociais, de apagar definitivamente a presença negra. O que ocorre na área da segurança pública expressa tendências mais profundas de uma cultura que se caracteriza pela rejeição ao negro.
Em 1987, para não ir muito longe, editei artigo de Lélia Gonzalez cujo título era “O terror nosso de cada dia” (jornal Raça & Classe, nº 2, ago./set.de 1987, p. 8). Lélia se referia a evento realizado pelo Movimento Negro da Baixada Fluminense em junho de 1987. Os dados levantados junto ao Instituto Médico Legal de Nova Iguaçu davam conta de 635 assassinatos de pessoas negras, de janeiro a maio daquele ano.
As comissões estão, portanto, em face de uma matéria que se estende no tempo, vinculada a diferentes conjunturas e sua longa duração é indício seguro de que corresponde a dimensões fundamentalmente hostis, fundamentalmente racistas de nossa organização social.
Na sabatina realizada ontem no Senado Federal, Luiz Fachin, indicado ao STF, referiu-se ao “pacto” de 1889, que, segundo ele, teria decidido como iríamos viver em sociedade. Ele se apresentou ao Senado, para desarmar restrições ideológicas à indicação de seu nome, como alguém que pauta sua conduta em obediência ao que se decidiu no tal pacto republicano. São referências assustadoras o bastante parar fazer fugir, em disparada, qualquer pessoa negra relativamente bem informada. Vaza, meu irmão, minha irmã, o bicho vai pegar.
Qualquer que tenha sido o pacto, neste ou em outro momento histórico, uma coisa é certa: ficamos de fora. O consenso, a sanção, a ausência de impedimentos ou obstáculos à iniciativa de quem quer que deseje por fim à vida de uma pessoa negra neste país se origina nessas fontes prestigiosas.
Ver as coisas como elas são não impede, ao contrário, que juntemos nossos esforços para contribuir com o trabalho das comissões legislativas, que recebem pressões de fora e de dentro (muitos de seus membros são policiais) para não produzirem resultados.
A dignidade das vítimas (de ontem e de hoje) e de seus familiares cobra-nos empenho para “apurar a verdade” do extermínio e exigir a punição dos responsáveis, desvelando a rede de omissões institucionais que alcançam familiares e testemunhas. E temos que impedir que as CPI’s, embora diante de uma montanha de corpos negros, silenciem sobre o racismo.
O título muito feliz do artigo de Lélia lembra-nos que numa coletividade atravessada pela distinção racial, que hierarquiza os seus membros pela cor da pele, a normalidade se constrói com um conjunto infinito de atrocidades cotidianas.
Edson Lopes Cardoso. Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo
Dumas e os outros
Para confrontar valores estabelecidos e aumentar a adesão às teses antirracistas que defendemos, em algum momento todos nós recorremos, na argumentação, a uma espécie de mapeamento de vultos negros ilustres.
Já era assim no sec. XIX, como registra o jornal O Homem, feito por negros livres em Recife, em 1876: “Quem foram Alexandre Dumas pai e Alexandre Dumas filho, essas glórias literárias da França, senão homens de côr parda?”
O artigo de O Homem argumentava na defesa da unidade da espécie humana (“a pelle dos homens de raça caucásica (branca) e a dos homens de raça ethiope (preta) são a mesma pelle”), trazendo novidades atualíssimas ainda em 2015, como o comprovam em sua peregrinação ativistas e propagandistas dedicados à formação política e à agitação de ideias antirracistas por esse Brasil afora.
Funciona? A meu ver tem importância e pertinência sempre, diante da prolongada resistência ideológica, especialmente quando sabemos (e podemos) explorar a fundo a perplexidade do auditório (“Nossa, eu não sabia que ele/ela era negro/a...”). Afinal, que os negros não possam se destacar parece ser uma negativa fundamental nesse colosso construído pelo racismo.
Por isso mesmo, quero chamar a atenção dos leitores, porque talvez tenha passado despercebido de muitos, para o lançamento no início deste ano do livro “O Conde Negro”, de Tom Reiss (editora Objetiva, tradução de Cássio de Arantes Leite). Trata-se de uma biografia, premiada com o Pulitzer, de Thomas-Alexandre Dumas, nascido no Haiti e avô das ilustres figuras literárias francesas.
Há o Alexandre Dumas pai, o autor de “Os Três Mosqueteiros”, “O Conde de Monte Cristo” e mais de uma centena de obras, há o Alexandre Dumas filho, autor de “A dama das camélias”, romance e peça e de uma também vasta obra, e Tom Reiss apresenta-nos agora o Alexandre Dumas avô.
Quando em 2002 o presidente francês Jacques Chirac fez trasladar as cinzas de Alexandre Dumas (pai) para o Panteão em Paris, uma homenagem no bicentenário do autor, muitos jornais brasileiros suprimiram as alusões à cor do romancista que estavam no noticiário internacional (inclusive Roberto Pompeu de Toledo, na Veja), como se a cor do “escritor francês mais lido no mundo” não tivesse a mínima importância.
Embora fosse autor de meu conhecimento desde a infância mais remota (minha mãe, noveleira-mor, adorava “O conde de Monte Cristo”), eu só iria topar com a imagem de Alexandre Dumas, na foto famosa de Félix Nadar, em plena vida adulta.
Assim como Antonio Candido, que conheceu Mario de Andrade, casou com uma prima dele de evidentes traços negroides e nunca soube que Mario era negro, efeito talvez daquela seletiva desatenção que não nos permite observar o que não queremos observar, a foto de Nadar, embora de ampla circulação, é vista, de fato, por pouca gente.
Mas o livro de Tom Reiss é mesmo uma delícia, porque podemos mergulhar numa aventura extraordinária de força, inteligência e integridade de um general republicano negro que bateu de frente com o crudelíssimo general Bonaparte e, infelizmente, foi derrotado. O livro vale pelo que narra do general Dumas, apoiado em documentação inédita, e, muito especialmente, pelas preciosas informações sobre a articulação política negra no final do século XVIII na França e suas colônias, agitadas pela Revolução, com vasta bibliografia em francês e inglês.
A nova era de liberdade inaugurada pela Revolução Francesa foi impulsionada também pela ação política de ativistas negros, que forçam os limites da “universalidade” da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. A biografia do general Dumas ilumina para nós a grande agitação política e militar de negros, homens e mulheres, livres e escravizados no período revolucionário e, de forma instrutiva, fortalece nossos esforços no presente.
Edson Lopes Cardoso Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo
“PAÍS DO RACISMO”
Ficha Técnica: Texto: Ana Flauzina Narração: Guilherme Pinto Edição: Hugo Pachiella e Ana Flauzina