Reflexões
Sobre nossa adesão, complexa e contraditória
“Numerosos oradores se fizeram ouvir, em sua totalidade pessoas importantes na vida política, econômica e social do país. No meio deles, porém, surgiu inesperadamente um preto que (...) fez um longo discurso.”
Extraio esse fragmento do livro “João Alfredo, o Estadista da Abolição”, de Manuel Correia de Andrade, p. 276. Nos parágrafos abaixo examino alguns aspectos de uma ideologia que diferenciava e diferencia pessoas (brancas) das não-pessoas (negras) e a forte disposição a se adaptar ao marasmo político vigente.
No fragmento, os oradores são pessoas de grande importância, logo a cor não precisa ser expressa. Nenhum leitor deixará, no entanto, de compreender que as pessoas são brancas. No contexto brasileiro, desde sempre, não é necessário citar a cor de pessoas importantes. Aliás, nossas circunstâncias impõem mesmo que ela nunca seja citada.
Aquele cuja pele é preta e foi designado por sua cor não é uma pessoa importante. Nem política, nem econômica, nem socialmente importante. Sua presença deve expressar testemunhos de gratidão pela ação atribuída ao estadista morto. João Alfredo Corrêa de Andrade (1835-1919) encaminhou o projeto da Lei Áurea, como todos sabem.
O “preto” teve espaço para uma fala de longa duração, na condição de testemunha da grandeza do outro. Ocorre que não é uma simples metonímia, quando você se refere a alguém pela cor de sua pele e essa pele é preta. O que acontece? Você designa um conjunto de seres inferiores, e inferiores pela razão que você acaba de assinalar. Os humanos identificados por esse marcador (pele preta) não o são de fato. Aqueles designados pela cor da pele não pertencem à categoria dos humanos. E no meio de oradores importantes, brancos, surge alguém que, condicionado por sua natureza inferior, não fala evidentemente para confrontar ou impor qualquer tipo de ruptura.
Nosso orador inopinado encarna certamente a adesão. Ele representa a figura do liberto agradecido aos “estadistas”, é uma construção extraordinária. Um homem preto enxerido que discursava longamente. O orador que registra a passagem do conselheiro João Alfredo mais parece uma ocorrência puramente retórica. Uma projeção da gratidão que compunha a representação oficial das antigas comemorações do 13 de Maio.
No texto, é uma presença inesperada, mas de cuja enunciação não se pode prescindir. Ele era o “porém”, mas sem o “porém”, e a situação de comunicação criada, certas propriedades do finado não poderiam ser realçadas como deveriam. Indispensável. Se não estivesse mesmo estado ali, deveria ter sido criado.
O aspecto simbólico do personagem o torna representante de “objetos” não dotados de ação própria. É o representante simbólico do grupo das não-pessoas. A motivação e a ação que se devem destacar no processo de emancipação precisam estar associadas a figuras como a do conselheiro morto.
Para acreditarmos que podemos mudar alguma coisa, temos que saber neutralizar os efeitos de símbolos e vinculações simbólicas aceitas como verdade histórica, as quais convertem os negros em não-pessoas, inofensivas e passivas, profundamente agradecidas.
A efetividade dessa representação ideológica já era duramente contrastada na República Velha, quando foi grande a agitação política dos negros em todo o país. Contrariamente a essa desvalorização e exclusão, pessoas negras enxeridas se debateram, espernearam, se organizaram e combateram no período imediatamente posterior à Abolição.
Vamos citar algumas emblemáticas: o advogado Manuel da Motta Monteiro Lopes, também pernambucano, se opôs, na onda de uma grande mobilização negra que cruzou o país, às barreiras que bloqueavam o acesso ao mundo da política. Se fez, na marra, o primeiro deputado negro no período dito republicano; Isaías Caminha, narrador do livro de estreia de Lima Barreto, que refutou na primeira pessoa teses eugenistas e racistas e mostrou as entranhas do jornalismo da capital; e João Cândido e seus camaradas falaram grosso contra a chibata e penas cruéis.
Mais de um século depois, quando consideramos a épica resistência negra na chamada República Velha, em contraste com os dias atuais, o sentimento que prevalece entre nos é o da perda de orientação política. Diante dos fatos e dados disponíveis, nossas escolhas parecem equivocadas e, se não ignoramos os fatos, somos incapazes de perceber o que se oculta atrás das aparências. De qualquer forma, para fins práticos, ainda que se leve em conta momentos de revolta e indignação, aderimos essencialmente aos valores de uma sociedade que nos desconstitui como pessoas. Marchamos em silêncio, num “férvido preito”, ao lado do esquife de estadistas mortos.
Edson Lopes Cardoso
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo