Legítima Defesa


Janine Moraes

“Encontrei mulheres que têm uma ‘dor que não cicatriza’, mas que conseguiam verbalizar memórias e desejos de justiça” diz Maíra Brito

Escrito em 2017 a partir da dissertação de mestrado defendida perante ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília o novo livro de Maíra Brito é resultado de uma pesquisa realizada com mães cujos filhos foram assassinados nos territórios negros do Rio de Janeiro. Para Maíra, seu livro funciona como um alto-falante que reverbera os discursos e as lutas das mães que perderam os filhos e nos provoca a olhar com mais atenção para a principal frente do genocídio da população negra: o extermínio da juventude negra.

Lançado pela editora Appris, o livro “Não. Ele não está” traz um relato direto sobre a história de vida de duas mulheres – Aparecida (nome fictício) e Ana Paula – que, a partir de diferentes formas, decidiram resistir ao trauma indizível de perder um filho e de refazer a própria história ressignificando esta experiência e construindo sentidos políticos – individuais e coletivos – para a luta por justiça, cidadania, direito e liberdade.

O trabalho de Maíra transita pelos temas contemporâneos do debate racial brasileiro escolhendo a história destas duas mulheres como guia para “fazer pensar” sobre como “o corpo negro continua sendo colocado um corpo violento, como o ‘inimigo’ a ser eliminado.” e sobre como se constroem as resistências e as lutas destas comunidades que cotidianamente tem convivido com o drama da arbitrariedade, da violência policial e do terror de Estado.

As histórias narradas pertencem ao tempo recente do Brasil e referem-se ao cotidiano da vida nas grandes e médias cidades onde o tema da violência é cada vez mais presente e ameaçador. É na periferia do Rio de Janeiro, especialmente na comunidade de Manguinhos, que se desenrolam os episódios que marcam a vida das protagonistas do livro e é também nestes espaços que ocorrem as ações pessoais e comunitárias que vão redirecionar a trajetória destas mulheres e apresenta-las ao confronto público com o tema do racismo, da violência de Estado, do sistema de justiça e da segurança pública.

De modo inteligente e criativo, o livro “Não. Ele não está” nos provoca a pensar as ausências de jovens negros em suas casas, em seus postos de trabalho e nas suas dinâmicas sociais pontuando conexões entre estes desaparecimentos de jovens e as narrativas policialescas do mundo político, tão em voga nos tempos atuais.

Nesta entrevista Maíra conta sobre a pesquisa de campo e a ideia de investigar as trajetórias de mulheres negras como forma de debater o tema do genocídio da população negra, fala sobre o papel da mídia na construção de um itinerário de violência nas cidades brasileiras e destaca suas perspectivas para lançamento e divulgação do livro. Confiram!
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FELIPE: O seu trabalho é uma provocação de uma jornalista negra discutindo com outras mulheres a experiência de dor e de luta deflagrada pelo racismo e pela violência de Estado. Queria começar esta conversa perguntando então como você definiria o objetivo principal do teu livro e lhe pedindo para contar um pouco como foi a sua experiência na pesquisa de campo?

MAIRA: Eu sempre digo e não me canso de repetir para que não se esqueçam: meu livro é uma espécie de alto-falante que reverbera os discursos e as lutas das mães que perderam os filhos assassinados. É comum ler que meu livro “dá voz” a essas mães, porém, essas mães têm voz, elas são sujeitas ativas, mas nem sempre o que elas dizem chegam a todos lugares. Então, o livro conta quem são essas mulheres, suas trajetórias marcadas por dor (mas também por amor) e nos provoca a olhar com mais atenção para a principal frente do genocídio da população negra, que é o extermínio da juventude negra.

Apesar de ter nascido e viver em Brasília, fiz o campo no Rio de Janeiro. Foi lá que eu encontrei mães dispostas a conversar comigo sobre um tema tão delicado. Eu tinha pouco tempo para fazer a pesquisa e não encontrei na minha cidade nenhuma mãe que pudesse falar sobre dores e ausências sem reabrir a ferida. No Rio, encontrei mulheres que têm essa “dor que não cicatriza” (como diz Aparecida na entrevista), mas que conseguiam verbalizar memórias e desejos de justiça. Conhecer Manguinhos (uma das comunidades da pesquisa de campo), estreitou ainda mais minha relação com o Rio de Janeiro. É uma cidade que tem muito a ensinar sobre lutas e manifestações.

FELIPE: Você é jornalista e já trabalhou tanto em redação quanto em assessorias e agora como pesquisadora. Olhando do ponto de vista da comunicação qual foi seu grande aprendizado neste trabalho? Qual aspecto da mídia você destacaria nesta agenda?

MAIRA: Fazer uma pesquisa como essa, totalmente independente, possibilitou um texto sem medo de relatar a verdade. Quando o profissional de jornalismo está atrelado a alguma empresa, eventualmente esbarrará com limitações de patrocínios, anúncios e outros acordos dos quais não tem acesso nem controle. Além da verdade, o meu trabalho tem um ganho muito importante que é colocar as mulheres negras como sujeitas de suas histórias. Elas falam, têm opiniões e muito ensinamentos para compartilhar com os leitores. Poder escrever tudo isso foi um privilégio.

Eu sinto falta dessa abordagem em grandes veículos de comunicação. A mídia ainda tem um modus operandi de fazer comunicação muito focada na vitimização. O texto do meu livro tem dor, mas também tem muito amor, coragem e resistência. Essas mulheres vão além das lágrimas. A vida delas também têm episódios de alegria, de carinho e de desejo por tempos mais justos.

FELIPE: Em todo o texto você reforça a necessidade de pensar a dimensão política das perdas destas mulheres e ressaltar a forma que elas se organizam e resistem, essa perspectiva confronta uma tendência geral da mídia hegemônica que é de expor o sofrimento das vítimas de violência a partir de um discurso de piedade e de despolitização. Como você vê hoje o papel do jornalismo da grande mídia na cobertura de segurança pública no país?

MAIRA: Tem um momento da entrevista que Ana Paula me diz: “A grande mídia também tem culpa pelo o que está acontecendo. Ela também tem as mãos sujas com o sangue dos nossos filhos. Porque não chamam as mães para falar o que tem que falar? É sempre o que a polícia alega”. A grande mídia no Brasil também peca na apuração incompleta e/ou tendenciosa. É urgente repensar qual comunicação tem sido produzida no nosso país, sobretudo quando se trata de segurança pública. Estamos em 2019 e o corpo negro continua sendo colocado um corpo violento, como o “inimigo” a ser eliminado.

FELIPE: Na história dos debates sobre violência policial no Brasil alguns trabalhos de jornalismo foram muito importantes como os clássicos livros do jornalista Caco Barcelos (Rota 66 e Abusado) ou as matérias de Tim Lopes que denunciaram aspectos muito centrais da tortura e do controle territorial nas periferias brasileiras. Como você analisa este tipo de trabalho de jornalismo investigativo hoje? Qual importância destas abordagens no debate sobre violência no Brasil contemporâneo?

MAIRA: O jornalismo investigativo no Brasil ficou morno durante alguns anos, principalmente depois da morte de Tim Lopes. Não sei explicar a causa, mas tivemos um hiato de um jornalismo investigativo expressivo como você citou na pergunta. Atualmente, sinto uma retomada desse tipo de jornalismo, mas que nem sempre denuncia apenas violência. O exemplo mais nítido é The Intercept e suas denúncias na editoria de política. Acho urgente que jornalistas voltem a investigar e denunciar violências de forma mais incisiva. Quando o jornalismo se volta para uma das suas principais funções que é informar, toda sociedade ganha. É a partir do que é veiculado no jornal que podemos mostrar para o exterior o que tem acontecido no nosso país. Essas abordagens também são relevantes porque alcançam outros espaços além do jornalístico. Minha pesquisa acadêmica é baseada em uma série de reportagens de jornais, sites e revistas de todo país. O combate à violência se torna muito mais complexo e moroso sem essas denúncias.

FELIPE: Tomando contato com estas mulheres que você entrevistou eu percebo que você conheceu mais de perto as organizações de mães de vítimas de violência de Estado e passou a manter uma agenda de compromisso acadêmico e solidariedade política com estes movimentos. Fala um pouco como é esta relação e o que você tem aprendido neste diálogo.

MAIRA: No livro, entrevistei duas mães: Aparecida (nome fictício), uma mãe que não faz parte de nenhum grupo organizado, mas que me ensinou e me ensina a (sobre)viver diante das adversidades, e Ana Paula Gomes de Oliveira, integrante do grupo Mães de Manguinhos.

Desde a primeira entrevista, sempre que estou no Rio de Janeiro, tiro um tempo para ir a Manguinhos e ver Ana Paula. Ela se tornou uma amiga. Me interessa saber como ela está, sua família e suas companheiras de luta. Recentemente, estive lá, almoçamos juntas e conversamos sobre a vida. Ela é muito mais do que apenas a sujeita da minha pesquisa, ela é uma grande amiga e companheira de luta por justiça. Tanto Aparecida como Ana Paula são referências como mulheres inspiradoras.

FELIPE: No seu trabalho o tempo todo você trata do desafio de nomear a dor, de visibilizar histórias, de identificar experiências de luta e de resistência. Neste contexto político tão adverso e violento para mulheres e homens negros como você avalia o quadro político mais geral? Quais desafios você considera mais urgentes para a luta negra neste campo?

MAIRA: São tempos difíceis porque as violências se intensificaram e vem em diversas frentes. A população negra está à mercê do desemprego de uma forma muito mais intensa do que a população não-negra. Tal cenário acarreta em fome, mais dificuldade ao sistema público de saúde e mais vulnerabilidade diante a segurança pública. Sem falar das dificuldades de acesso à educação e principalmente ao ensino superior. O racismo é estrutural e o Estado é racista.

Percebi nos últimos meses que a população negra, de uma forma geral, se desesperou ao ver o fim ou o enfraquecimento de várias conquistas batalhadas ao longo de tantas décadas. A forma para resistir a tanto desmonte e à intensificação do discurso de ódio é apostar em estratégias de amor e solidariedade. Um ótimo exemplo disso são justamente essas mães da minha pesquisa: elas vivem o pesadelo que é perder um filho (ainda mais de forma inesperada e violenta) e seguem firmes, lutando e a qualquer sinal de angústia e tristeza profunda de alguma de suas companheiras, estão juntas pensando em maneiras de reverter o quadro. Elas também dão risadas e fazem planos juntas. Elas (sobre)vivem diante do caos com bravura e afeto.

FELIPE: Por fim, quais são as suas perspectivas na divulgação e lançamento deste trabalho e na realização de outros estudos sobre o tema do ponto de vista acadêmico e na sua militância política.

MAIRA: O livro foi lançado em novembro [de 2018] e tem tido uma ótima aceitação do público. De lá pra cá, fiz outros lançamentos em Brasília e espero, em breve, leva-lo para Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo.

Na minha última passagem pelo Rio, reforcei com Ana Paula meu desejo de escrever sobre o grupo Mães de Manguinhos. Quero mostrar com mais detalhes quem são as mães que fazem parte desse grupo, quais são suas demandas e como elas pensam raça, gênero, questões de classe e segurança pública. As pessoas – dentro e fora da academia – precisam conhecer a potência dessas mulheres.




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