Reflexões
A LIBERDADE DAS MULHERES COMO MOEDA ELEITORAL
PL 1094/2024 abriu a caixa de pandora de dois temas caros e interconectados da agenda conservadora no Brasil: aborto e estupro. Inadvertidamente, ao propor a criminalização por homicídio de mulheres que pratiquem aborto, incluindo vítimas de estupro, a proposta revela que é o controle dos corpos femininos e não o alardeado direito à vida, a grande agenda em disputa.
A repercussão ao projeto de lei não se deu pelo avanço punitivista sobre o aborto. Em verdade, o caldo só entornou porque a tentativa de se criminalizar as mulheres que praticam o aborto explicita a forma como as mulheres estupradas são tratadas. Reescrever a narrativa do aborto acabou por evidenciar o lugar degradante que a vítima de estupro ocupa diante do sistema de justiça criminal: eis o nó da questão.
Fato é que a proposta que tramita na Câmara dos Deputados opta por criminalizar mulheres, em especial as negras, submetendo-as à morte em vida dos ambientes prisionais, ao invés de atuar nas causas de mortes evitáveis por mortalidade materno-infantil, de enfrentar decisivamente as execuções sumárias que retiram prematura e injustificadamente a vida de filhos e filhas por violência policial e de garantir que as mulheres privadas de liberdade tenham as condições necessárias para criarem sua prole. Se a bancada “Pró Vida” tivesse a preocupação com a vida plena, enveredaria seus esforços para ampliar a rede de proteção de saúde integral, assistência social, segurança alimentar, moradia, educação e trabalho como centro de atuação.
Como não é a vida que importa, o que acabou ocorrendo foi a reescrita política do art.217 do Código Penal, que disciplina o crime de estupro, evidenciando o nível de violência institucional dirigido às mulheres no Brasil. Afinal, na prática, espera-se que não haja denúncia, resultando na enorme subnotificação da violência sexual, dada, em grande medida, pela ameaça a um tipo de julgamento social que culpabiliza a vítima pela violência sofrida.
Caso a mulher decida denunciar, a punição vem em forma de escrutínio de sua vida sexual, descredibilização de sua palavra e humilhação em audiências judiciais, como em casos recentes amplamente divulgados revelam. Nessa esfera, percebemos também movimentação do legislativo, como a inscrita no projeto de lei 3369/2019, perversamente batizado de “Neymar da Penha”, que propõe o aumento de pena nos casos de denunciação caluniosa quando a falsa imputação se tratar de crimes contra a dignidade sexual. Trata-se, nitidamente, de mais uma tentativa de inibir a denúncia das mulheres, tendo em vista o ambiente social e institucional hostil ao acolhimento de sua palavra.
Finalmente, o PL 1094, já batizado como “PL do estuprador”, torna a vítima de estupro passível de condenação pela prática de homicídio, caso resolva interromper a gravidez fruto da violência. Nesse cenário, se desenha o descalabro das vítimas poderem efetivamente cumprir uma pena maior do que o estuprador.
É essa equação matemática específica a pedra no sapato que constrange o presidente da Câmara, Arthur Lira, e seus apoiadores, nesse jogo que quer usar a pauta dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres como moeda de troca no tabuleiro eleitoral da definição da nova mesa diretora da Câmara que se aproxima: nada mais.
Como era de se esperar, para se acabar com esse paradoxo já circulam fórmulas que apontam para o aumento de pena para os estupradores, o que só soma com uma lógica punitivista que nunca resultou em defesa efetiva dos direitos das mulheres.
Enquanto uma solução mais bem acaba não chega, foi realizada, no último dia 12, a votação relâmpago que, em 23 segundos, aprovou a tramitação do projeto de lei em regime de urgência na Câmara dos Deputados. A urgência de se atender às demandas da família tradicional brasileira, que tem como foco garantir o direito dos homens de seguirem controlando os direitos reprodutivos das mulheres, e, sobretudo, ampliar as condições de possibilidade para que a violência sexual siga em curso como um dado subnotificado e naturalizado. A urgência que, em última instância, reduz a liberdade das mulheres a uma mera barganha política.
Ana Flauzina e Thula Pires