Reflexões


Glenda Santos

“Se constitucional for todo movimento político de luta por direitos, o quilombo já o faz por esses mais de 400 anos” afirma Rodrigo Portela

O ensino de direito constitucional tradicionalmente passa pelas leituras de autores europeus, pela revisão das classificações constitucionais e pela forte ênfase na ideia de uma experiência constitucional originária transplantada para o Brasil através da colonização europeia. Para o professor Rodrigo Portela este esquema é frágil e insuficiente, pois, oblitera a participação de negras e indígenas na construção do repertório de direitos e, ao mesmo tempo, reduz o campo no qual construímos os sentidos do que é Constituição e do que são direitos fundamentais.

Em sua pesquisa sobre a luta com as famílias de Barro Vermelho e Contente no Piauí o pesquisador Rodrigo Portela propõe um constitucionalismo que tenha por premissa a constatação de que é necessária uma ruptura com a narrativa sobre o lugar do negro na “nação brasileira” e que “a luta por direitos dos quilombos diz mais sobre os conceitos, interpretações e aplicações dos direitos fundamentais, do que qualquer outra narrativa moderna.”

Para Portela, o esforço de revelar as lutas negras por direitos é também um esforço para trazer para a cena o debate sobre um novo constitucionalismo e sobre uma outra noção de justiça e cidadania. A partir do resgate de autores e autoras fundantes do pensamento negro brasileiro ele interpela consolidadas tradições do direito e desloca o quilombo para o centro do constitucionalismo brasileiro.

Ouvindo “AmarElo”, a nova música de Emicida – gravada com participação de Majur e Pabllo Vittar -, Rodrigo respondeu a esta entrevista em que ele fala sobre sua pesquisa, a experiência como militante político e suas reflexões sobre o atual momento da luta racial no Brasil. Confira a íntegra!

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Felipe Freitas - O seu livro – Constitucionalismo e Quilombos – passeia por diferentes áreas do conhecimento (ciências sociais, história, direito socioambiental e constitucionalismo) para trabalhar “o protagonismo do Estado nas violações de direitos das populações quilombolas”. Queria começar esta conversa te perguntando então como você definiria o objetivo principal da sua dissertação de mestrado?

Rodrigo Portela - Preciso iniciar agradecendo. Estar aqui te respondendo é um momento importante em dimensões diversas. Sou grato pelo convite e será uma grande oportunidade para partilhar a experiência do livro. A potência dessas entrevistas fortalece as agências negras em um ambiente racialmente violento, que é a academia. E decorre de uma experiência concreta da “legitima defesa” dos nossos ideais, projetos e ações para tornar realidade a nossa liberdade na esteira do que a Brado Negro, projeto idealizado e conduzido por Ana Luiza Flauzina, tem feito.

Assim, eu parto de três dimensões importantes para falar da minha pesquisa: a primeira é subjetiva, pois eu costumo afirmar que foi no contexto da pesquisa e extensão que tive uma formação jurídica, foi na luta com as famílias de Barro Vermelho e Contente que me formei. A outra dimensão importante é política, pois já são mais de 400 anos da resistência quilombola, e, no atual contexto, o Estado brasileiro retoma oficialmente (que se manteve latente, mesmo após 05 de outubro de 1998) o discurso de extermínio dos modos de criar, fazer e viver quilombola. E, por fim, uma dimensão científica, pois é um tema constantemente abafado pela academia branca-racista ou quando não, se faz presente sob o signo do silêncio do racismo (as violências e as agências).

Acredito que assim chego à resposta, pois o objetivo conflui com essas três dimensões, já que ao narrar parte da trajetória-experiência das comunidades quilombolas de Barro Vermelho e Contente, enquanto afirmação da presença quilombola no enfrentamento ao racismo, portanto, na luta por direitos, estou interpelando a tradição constitucional que apaga e silencia essas trajetórias-experiências. Enfim, o objetivo é apontar que a narrativa de luta por direitos dos quilombos diz mais sobre os conceitos, interpretações e aplicações dos direitos fundamentais (igualdade, liberdade e propriedade), do que qualquer outra narrativa moderna-colonial (francesa, estadunidense, inglesa, alemã etc.) como tradição constitucional brasileira costuma afirmar.

Felipe Freitas - Na introdução do seu livro você destaca sua trajetória como advogado popular, militante do movimento negro e como ativista de direitos humanos, de que modo você descreve a sua entrada no debate sobre quilombos? Como você “entra” nesta agenda política e acadêmica das comunidades tradicionais?

Rodrigo Portela - Esta é uma questão que procuro evidenciar na escrita, que estou neste lugar coletivamente. Não chego e muito menos permaneço sozinho. E considero importante ressaltar, pois diz muito sobre a forma com que fui formado no ensino, pesquisa e extensão. No ano de 2012, tive a oportunidade de conhecer a Prof.ª Maria Sueli (do curso de Direito da UFPI), à época e atualmente coordenadora do grupo de pesquisa e extensão Direitos Humanos e Cidadania – DiHuCi/DCJ/UFPI - em um evento de Ciências Sociais. Agora, não recordo as motivações que me levaram àquele congresso, talvez a curiosidade, pois estudava em uma IES particular, por intermédio de bolsa integral do PROUNI.

Esse contexto não apresentava horizontes diferentes do que tradicionalmente são revelados a nós nos cursos de direito: manuais, doutrinas, estágios e OAB. Neste evento, fiquei surpreso e encantado com estudantes que estavam no mesmo semestre que o meu, apresentando seus artigos produzidos a partir da experiência da pesquisa-extensão. Eu também queria fazer aquilo! Neste período, também já estava inserido no contexto das assessorias jurídicas universitárias populares, e os meus veteranos e colegas de turma haviam acabado de resgatar o projeto de extensão popular da faculdade. Essas duas vivências me mobilizaram a seguir outro caminho, inclusive que parecia mais distante, especialmente, pelas barreiras socioeconômicas.

Este caminhar foi sendo percorrido, toda semana, nas manhãs de sexta-feira e nos finais de semana, com encontros do DiHuCi e atividades nas comunidades quilombolas. Experiências que me colocaram à frente o fazer e aprender da pesquisa e extensão no encontro com o movimento quilombola e as comunidades quilombolas do Piauí. Nesse período, fomos mobilizados pelo movimento estadual quilombola (Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí – CECOQ) para contribuir com pesquisas e a assessoria jurídica em conflitos territoriais quilombolas. Nesse percorrer, realizamos pesquisas que abordaram os impactos do desenvolvimento nos saberes quilombolas e as violações de direitos dessas populações com a implantação de empreendimentos. Por isso, acima mencionei que costumo reconhecer que a minha formação jurídica foi nos territórios quilombolas. Os sentidos de justiça foram partilhados nessa luta junto às populações quilombolas. Todas aquelas pessoas que se formaram nessa experiência coletiva da assessoria jurídica popular junto às comunidades quilombolas do Piauí acabaram constituindo, em 2014, uma associação de assessores técnicos populares em direitos humanos, o Coletivo Antônia Flor. É por essa organização que temos mantido nossa atuação junto às lutas quilombolas do Piauí; é a partir desse lugar que tenho contribuído na agenda das comunidades negras: a luta por direitos junto aos quilombos do Piauí e o enfretamento ao racismo de Estado.

Felipe Freitas - Outro aspecto que você trabalha é a questão do “lugar do negro” na formação do Estado Brasileiro. Partindo do caso concreto dos territórios de Barro Vermelho e Contente você debate como a categoria raça rearranja a narrativa dos direitos fundamentais. Para você quais seriam então as bases para uma teoria constitucional que tenha por referência o enfrentamento ao racismo?

Rodrigo Portela - Felipe, este é um ponto crucial na agência negra em contextos distintos, mas destaco aqui uma necessidade de ruptura com a narrativa sobre o lugar do negro na “nação brasileira”. Sistematicamente nossa experiência tem sido reduzida à escravidão como sendo a nossa única história. Esperança Garcia, por exemplo, uma mulher escravizada, que, em 1770, peticiona ao governo da então capitania São José do Piauí denunciando e reclamando os maus tratos que acometiam à todas as escravizadas nas fazendas de gados. Seus escritos desmoronam a narrativa hegemônica, que é caracterizada por um escasso e brando uso da mão-de-obra escravizada e que produz a imagem de ausência da presença e da agência negra. Abafando-se a densa presença quilombola que revela não apenas a contraposição ao projeto colonial-escravocrata-racista, mas também as complexas e plurais experiências de liberdade e acesso à terra. Portanto, implicando diretamente em vivências que divergem da narrativa branca sobre direitos como liberdade, igualdade e propriedade, considerados eixo fundamental do constitucionalismo moderno.

Nesse sentido, o que considero como base para uma disputa possível no campo constitucional (prefiro nesses termos para não nos iludirmos com os limites do poder político instituído nessa tradição de teoria e prática constitucional sem enfrentamento da questão racial, mas que é importante no livro afirmar uma produção constitucional que é sistematicamente apagada, a da história dos quilombos) é a produção de nossa memória de luta por direitos. Nós não somos personagens submissos, passivos e, muito menos, figurantes da história dessa nação. Nós somos protagonistas de luta por direitos, que a tradição constitucional convencionou chamar de fundamentais, mas que dizem mais sobre a nossa história do que a promessa de realização universal da liberdade, igualdade e propriedade. Esta nação que é reivindicada nos marcos de personagens e eventos brancos, foi erguida por nós, e, no caso do Piauí, não foi diferente. As fazendas de gados, a produção agrícola, o comércio, a burocracia do estado, enfim, a formação socioterritorial tem nossa marca. Por isso, seguindo a orientação política e teórica de tantos que vieram antes de mim (Esperança Garcia, Luiz Gama, Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Abdias Nascimento, Luiza Bairros, Sueli Carneiro, Dora Lúcia Bertúlio...), acredito que um constitucionalismo que leve à sério a raça precisa reivindicar a memória da diáspora africana. Assim, em termos de direitos quilombolas, não é possível enfrentar a violação dos direitos dessa população sem o esforço historiográfico de perceber suas agências por direitos. No Piauí houve disputa por direitos no passado, e há no presente, protagonizada por famílias negras, as comunidades de Barro Vermelho e Contente, confirmam que somos memória e presença de um “sertão quilombola”.

Felipe Freitas - Do ponto de vista teórico você fala em Dora Bertúlio como a pioneira numa agenda de pesquisa no campo jurídico que tematize as relações raciais no Brasil e “leve a sério a raça” dedicando um tópico do seu trabalho ao que chama de “contribuições fundacionais de Dora Bertúlio”. Explica para nós, quem é Dora Lúcia e por que o trabalho dela te parece tão importante?

Por força do racismo, a obra de Dora Lúcia, especialmente sua dissertação escrita em 1989, foi abafada da teoria e prática jurídica. Apenas no curso do mestrado que tive a oportunidade de ler, apesar de já conhecê-la na condição de procuradora da Fundação Cultural Palmares. E devo registrar a importância do Maré, especialmente, com as discussões desenvolvidas no âmbito da primeira turma da disciplina ofertada pelo grupo no curso de graduação em direito da UnB.

Dora Lúcia Bertúlio é uma importante referência para o campo jurídico que leva à sério a raça, por sua produção intelectual e pela sua implicação política, tendo pioneirismo na luta pela implementação das cotas raciais como ação afirmativa nas universidades públicas do país. Indico como leitura sobre um pouco de sua trajetória a entrevista por ela concedida no projeto Mulheres da UFPR. Atualmente, Dora Lúcia está procuradora da instituição em que é egressa e tem vínculo histórico-político, desde sua passagem pelo Centro Acadêmico Hugo Simões (curso de Direito da UFPR), no período da ditadura militar, iniciando a docência no curso de Direito entre o final da década de 1990 e início da década de 2000.

Nas interlocuções do Maré, especialmente com Marcos Queiroz propomos em texto (ainda não publicado) a sistematização das contribuições metodológicas da obra de Dora Lúcia para pesquisa jurídica, partindo basicamente de seu texto “Direito e Relações Raciais: uma introdução crítica ao racismo”. No livro procurei desenvolver alguns desses aspectos, estendendo também a leitura de sua obra com um texto que apresentou em 1996. A sua obra é fundamental para o livro, é a principal interlocução teórica. E o principal argumento que trago da leitura de Dora é a tese do silêncio dos juristas sobre a raça (também desenvolvida em outros trabalhos do grupo e interlocutores). E no livro aparece em dois momentos: no argumento do silêncio na narrativa judicial ao apagar a presença quilombola nas propriedades impactadas pela construção da ferrovia; bem como, na racialização dos conceitos jurídicos fundamentais do conflito (na sua formulação e aplicação): interesse público, propriedade, urgência e relevância. Portanto, Dora contribui para afirmar que o racismo opera na exclusão da população negra desses axiomas, inclusive, apagando suas contribuições teóricas e práticas para a construção de direitos, como a propriedade, no caso da população quilombola, que tem no acesso à terra sua luta secular.

Felipe Freitas - No estudo sobre quilombos você aponta não só aspectos teóricos importantes para a discussão da história do direito e do constitucionalismo, mas também elementos de estudo empírico sobre a situação socioeconômica das comunidades quilombolas do estado do Piauí descrevendo um contexto de sérios conflitos políticos e socioambientais. Na sua avaliação qual é o quadro de regularização fundiária e de acesso a direitos das comunidades quilombolas no Brasil hoje? Há horizontes de avanço para estes grupos em termos de preservação do direito à memória e de acesso a direitos sociais e políticos?

Rodrigo Portela - O quadro é de genocídio! Narro uma história do tempo presente, sobre as diversas faces do racismo (epistêmica, ambiental e institucional, enfim, estrutural) e suas implicações no extermínio dos modos de fazer, criar e viver quilombola. Peço que fechem os olhos e imaginem a seguinte cena: uma ferrovia construída e erguida de uma maneira que corte ao meio as suas casas. É exatamente essa cena que narro no livro. Ela é real e, infelizmente, tem sido uma tônica para as comunidades quilombolas e indígenas neste país. Essa cena, não existiria se o racismo não fosse um modus operandi do Estado e seu suposto pacto democrático de igualdade. No sistema jurídico instaurado em 05 de outubro de 1988, essa cena seria inimaginável, pois é dever deste mesmo estado (responsável pelo empreendimento), conforme o art. 68 do ADCT garantir às comunidades quilombolas os títulos de seus respectivos territórios. No entanto, opera sobre o sistema uma distribuição desigual, ou mesmo violação de direitos por razões raciais. Isso é o racismo institucional. Esse projeto genocida é secular e ataca noutras direções. Além de violar o direito constitucional ao território e provocar danos ambientais diversos, com alteração dos meios físicos-ambientais, o estado promove sua violência sobre os saberes dessas comunidades. Os seus modos de armazenar água, criar animais, produzir mel, enfim, os saberes que viabilizam a vida foram drasticamente afetados.

Ampliando ao cenário nacional, em termos de regularização fundiária, apenas 217 das 3.271 comunidades quilombolas já certificadas no Brasil tiveram os títulos dos territórios emitidos, significando apenas 6,63%. Além disso, houve uma drástica redução orçamentária dos recursos destinados para titulação dos territórios quilombolas. No último ano foi disponibilizado apenas 956 mil reais, enquanto em 2010 eram destinados 54,2 milhões de reais, valores que já eram insuficientes para viabilizar a política fundiária dos quilombos, e que hoje são irrisórios diante do cenário de que mais de 93% das comunidades quilombolas certificadas aguardam o trâmite para titulação dos seus territórios. É importante destacar esse aspecto, pois garantir o direito ao território é a primeira dimensão institucional a ser superada pelas comunidades para acesso e inclusão em políticas públicas básicas.

Não nos esqueçamos que o atual presidente afirmou em 2017: “não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”. O quadro de violência contra os quilombos já é alarmante. Em dossiê publicado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, o livro sob o título “Racismo e Violência contra quilombos no Brasil” aponta um total de 18 assassinatos apenas no ano de 2017, enquanto entre os anos de 2011 e 2016 foram 6 assassinatos. Esse cenário de acirramento dos conflitos fundiários nos territórios tem sido ampliado com as disputas provocadas por empreendimentos, agronegócio e grilagens. A essa conjuntura soma-se o discurso do governo de guerra aos quilombolas, por isso, a perspectiva é de agudização da violência institucional e, portanto, ameaça ao modo de vida quilombola. E para o que eu digo, me apoio no mestre quilombola Antônio Bispo, que apresenta em sua obra “Colonização, Quilombos: modos e significações” as temporalidades dessa guerra secular contra os quilombos no passado e presente.

As condições adversas do atual contexto, foram ampliadas por este período de 30 anos de constitucionalismo silente às promessas a população quilombola. Eu costumo afirmar que tivemos a oportunidade de realizar a verdadeira reforma agrária desse país, ao levar à cabo o direito previsto no art. 68 do ADCT e regulamentado pelo Decreto nº 4.887/2003 (que teve sua constitucionalidade questionado por meio da ADI nº 3239, no STF, em um processo que perdurou 14 anos), titulando-se as mais de 6 mil comunidades quilombolas autoidentificadas desse país. Mas, enquanto a propriedade no Brasil estiver sobre os domínios de mãos brancas, o pacto constitucional de 1988 será mais um engodo jurídico sustentado pela noção de igualdade formulada na ideologia da democracia racial e que tem preservado a distribuição desigual de direitos entre os “pertencentes” de uma mesma “nação”.

Felipe Freitas - Sobre a questão historiográfica você destaca que a narrativa hegemônica sobre o Piauí tem validado mitos raciais e apagado a presença quilombola. Fala um pouco para nós quais foram suas descobertas mais importantes sobre esta historiografia do sertão piauiense?

Rodrigo Portela - No primeiro capítulo do livro, mobilizo os “clássicos” da história oficiosa do Piauí para evidenciar mitos raciais na formação do estado. E me encontro com a história que é contada, desde o ensino básico ao ensino superior, nos museus e símbolos, nas inscrições oficiais, nas homenagens em ruas, praças, prédios etc. O primeiro desses mitos, é que o Piauí é fruto da “incursão destemida” de dois bandeirantes (brancos), responsáveis pela colonização e ocupação do território do estado. O racismo é tão perverso que sequer desconfiamos de uma narrativa tão ilógica. Como por muito tempo se sustentou essa narrativa? Acreditar que dois homens, independentemente de seus poderes e posses, possam ter conseguido tal feito de ocupar, povoar e governar um território tão extenso?

O segundo destes mitos, é que tivemos no estado uma escravidão branda. Dadas as condições econômicas, a criação de gado exigia pouca mão-de-obra, além de condições mais livres para o exercício do pastoreio. Inclusive, reforçado sobre a máxima (racista) de que nas fazendas (em regra, fazendas nacionais) do Piauí, os escravizados nacionais foram os primeiros “funcionários públicos”. Ora, o velho esquema interpretativo da zona da mata (plantation) sendo reproduzido como única narrativa da escravidão no Brasil. Além disso, vemos nessa construção discursiva uma tentativa (bem-sucedida) de minimizar a violência da escravidão, como se arrancar a liberdade, por si só não fosse expressão máxima da violência racial.

O terceiro mito, se sustenta nos dois argumentos que continuamente reproduziram uma suposta ausência da agência negra e indígena, notadamente, da experiência quilombola. Um indício, acionado no livro que se aproxima às experiências de formação das comunidades quilombolas de Barro Vermelho e Contente, é o apagamento da dimensão racial no trabalho do pastoreio, continuadamente desenvolvido pela população negra no pós-abolição e que permitiu a constituição de muitas comunidades negras no sertão do Piauí por meio do acesso à terra e dos vínculos familiares. E esse apagamento se dá na criação da figura do vaqueiro em substituição ao escravizado.

Estes argumentos, que foram manuseados pela historiográfica tradicional, reforçaram o discurso de apagamento da agência quilombola (que já me referi), no entanto, são facilmente enfrentados pela densa presença quilombola no sertão piauiense. O que nos coloca novamente a necessidade de romper, por meio de uma narrativa inscrita pela memória e oralidade quilombola, com o apagamento da agência negra. Como um estado de quase 80% de população negra, pode ter sua história narrada nos marcos da branquitude? Beatriz Nascimento acertadamente nos mobiliza ao afirmar que o “quilombo tem papel fundamental na consciência histórica dos negros”.

Felipe Freitas - Como advogado popular, como militante do movimento negro qual as conclusões da sua pesquisa que você considera mais relevantes para a luta política das comunidades de Barro Vermelho e Contente em sua luta por reconhecimento, terra, trabalho e direito?

Rodrigo Portela - Acredito que é a afirmação do quilombo como trajetória-experiência de luta por direitos. Costumo dizer que a matriz histórico-jurídica do quilombo, enquanto movimento político, não precisa da adjetivação constitucional para ter sua legitimidade, enquanto fonte jurídica dos direitos da população negra. Pois, se constitucional for todo movimento político de luta por direitos, o quilombo já o faz por esses mais de 400 anos. Assim, em termos concretos, penso que os resultados dessa pesquisa às comunidades que protagonizam essa história, residem na possibilidade de potencializar a luta presente de Barro Vermelho e Contente, atualmente as comunidades resistem as investidas de retomada do empreendimento que está suspenso por força de sentença favorável às comunidades. O livro também evidencia uma dimensão do conflito ainda não enfrentada na esfera judicial, mas que tem como substrato principal a resistência política nesses mais de 10 anos de conflito. Além de uma pesquisa-denúncia, considero que o texto (sem entregar as estratégias) narra a agência dessas famílias negras, como uma ruptura do silêncio dos juristas quanto às contribuições da trajetória-experiência quilombola na disputa por direitos fundamentais. Os quilombos como memória e presença!

Felipe Freitas - Por fim, conta quais são as suas perspectivas na divulgação e lançamento deste trabalho e na realização de outros estudos sobre o tema em seu doutorado e na sua militância política.

Rodrigo Portela- Tem sido uma experiência fundamental na minha trajetória pessoal e profissional. Mas penso que há um projeto maior que a visibilidade da autoria, que é a necessidade de fortalecer a agenda política dos quilombos. Especificamente no caso que temos acompanhado, o livro tornará mais público uma denúncia quase sempre ignorada, mesmo que tenha sido estampada em diversos meios de comunicação de massa (reportagens em revistas, telejornais, webjornais etc), é comum pessoas afirmarem que desconhecem o conflito. E, atualmente, com a obra suspensa por conta de sentença fundada nas violações de direitos das comunidades de Barro Vermelho e Contente, o livro constitui um instrumento político para afirmar os direitos, bem como a força dessa agência quilombola. Além disso, acredito que o livro vem numa trajetória coletiva que permite a afirmação que estamos construindo uma agenda de pesquisa no campo jurídico. Apenas para citar intelectuais negros que tenho lido: Maria Sueli Rodrigues de Sousa; Emília Joana V. de Oliveira; Heiza Maria de Sousa P. Aguiar; Lucas Araújo A. Pereira; Felipe S. Estrela de Carvalho; Izadora Nogueira dos Santos M. e quilombolas como Vercilene Francisco Dias e Oriel Rodrigues de Moraes. Isto, indica que temos autoras e autores no campo jurídico levando à sério os impactos do racismo sobre os direitos das comunidades quilombolas. E esse cenário me traz esperança. Acredito que o compromisso político desses escritos negros tem potência para narrarmos a agência quilombola como presença em contraposição ao supremacismo branco do direito, que insiste em inscrever a história quilombola nos marcos da escravidão. Já dizia Baco, o Exu do Blues, “a lei áurea é todo verso que” esse povo escreve. Por isso, afirmo no livro que a centralidade do quilombo à teoria e prática constitucional brasileira, se justifica pelo entendimento de que sua presença revela uma experiência histórica de contraposição ao racismo. Deslocando o quilombo para o centro do constitucionalismo brasileiro como umas das principais agências (de luta por direitos) da população negra em diáspora.

“Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóis sumir”
Emicida - AmarElo







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