Reflexões


“A brutalidade dos processos de colonização nos tornou incapazes de pronunciar a dor em corpos negros” afirma Ana Flauzina

Em 2018 o livro o Corpo Negro Caído no Chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado Brasileiro completou dez anos da sua primeira edição e a autora, Ana Luiza Flauzina, falou à Brado Negro sobre os impactos da obra e sobre as suas perspectivas acerca do debate racial no Brasil contemporâneo.

Entrevista realizada por Felipe da Silva Freitas

O livro o Corpo Negro caído no Chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado Brasileiro foi um acontecimento no debate criminológico do ano de 2008. Resultado da dissertação de mestrado de Ana Flauzina o livro analisou aspectos centrais do modelo punitivo nacional com a proposta de “tomar o racismo como variável substantiva da constituição do sistema penal brasileiro” e de assumir as consequências deste giro conceitual em todo o debate da criminologia.

As afirmações diretas e fortes de Ana representaram novidade mesmo entre os já experientes nomes da criminologia crítica e seu livro foi rapidamente consumido na primeira edição. No prefácio escrito em 2008 o professor Nilo Batista destacava: “Na academia brasileira, o silêncio sorridente do direito penal chapa-branca e da criminologia colaboracionista perante estas chacinas silenciosas é rompido por poucas vozes, às quais doravante vem agregar-se a de Ana Luiza Pinheiro Flauzina”.

Para nós, que durante toda a década de 2000, militávamos nos coletivos negros das universidades brasileiras a palavra e o estilo de Ana já haviam chegado antes e suas ideias já eram bem conhecidas. Sua crítica radical, sua defesa da autonomia e da auto-organização de negras e negros e o profundo conhecimento das produções criminológicas já nos mobilizavam no período em que, como representante do EnegreSer, coletivo organizado em Brasília, Ana Flauzina participava das discussões do movimento negro no âmbito nacional.

Foi ouvindo Flauzina numa reunião por volta de 2004, 2005 que pela primeira vez ouvi falar sobre as possibilidades de uma aplicação mais direta da discussão racial no âmbito da criminologia. Lembro com muita força do impacto daquelas palavras naquele plenário e do agito causado entre nós, estudantes negros na área de criminologia, quando o discurso virou o livro de dez anos atrás que foi relançado pela Brado neste ano de 2018.

Desde a publicação da nova edição que tento convencer Ana, hoje amiga e parceira em vários trabalhos, a falar sobre a obra. Ela relutou. Foram muitas as tentativas pois, mesmo reconhecendo o significado do trabalho, ela sempre achou que “não representa, em si, uma novidade ou ruptura. Funciona muito mais como um amplificador do que como a inauguração de qualquer coisa que justifique sua circulação” e que, portanto, uma entrevista sobre o tema não necessariamente acrescentaria muito ao debate.

Inconformado com a negativa. Segui nas investidas argumentando a publicação da segunda edição, falando da importância de contextualizar o livro até que, já nos últimos dias do ano, consegui convencê-la a driblar as correções provas e as atribuições do fim do semestre e responder por e-mail a esta entrevista que trata da repercussão do Corpo Negro e das suas impressões acerca do debate racial contemporâneo.

Acho que valeu a pena ter insistido tanto...
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O Corpo Negro está completando 10 anos de publicação e neste tempo o livro foi bastante citado em diferentes áreas, animou debates sobre o tema e inspirou outras pesquisas em sentido semelhante. A que você atribui este sucesso do livro?

Acredito que a circulação tem a ver com uma sede de materiais sobre a temática, num contexto em que as denúncias dos movimentos negros em relação ao genocídio se expandiam. Por óbvio, o corpo negro nasce a reboque dessas denúncias, é apenas uma articulação das inquietudes há muito pautadas por diversos setores da militância com um jargão acadêmico que a torna acessível. Talvez seja essa a razão do impacto do trabalho: conseguir fissurar a blindagem jurídica para pautar a questão do genocídio nos nossos termos. Mas ele definitivamente não representa, em si, uma novidade ou ruptura. Funciona muito mais como um amplificador do que como a inauguração de qualquer coisa que justifique sua circulação. Por isso desconfio um pouco dessa coisa de qualificar o trabalho como um sucesso. Acho que o livro tem méritos em termos de conteúdo, mas acredito que são os esforços dos movimentos negros em pautar a questão do genocídio como uma agenda decisiva que justifica a sua ampla divulgação.

No livro você afirma que há um fosso entre o sistema penal brasileiro e os instrumentos teóricos usados para apreender esta realidade. Dez anos depois como você avalia os impactos do Corpo Negro no debate sobre racismo na criminologia brasileira? Você acha que este debate avançou?

Tenho uma relação muito ambígua com a criminologia. Sou credora de seus ensinamentos, pelas desconstruções que promove e isso altera minha visão de mundo. Então na minha formação, a criminologia ocupa um espaço importante, principalmente no repúdio aos ditames do punitivismo. Mas ela é definitivamente um produto patenteado pela branquitude. Acho que apesar dos esforços, a questão racial foi incorporada como parte do jargão politicamente correto do campo. Por isso acredito que a crítica central do livro permanece: o racismo não entra como substrato nas análises. Ao contrário, na maioria dos trabalhos os negros seguem figurando apenas como personagens da seletividade penal. Me incomoda também o fato desse ser um campo que mantém um tipo de tutoria arrogante da movimentação dos movimentos sociais no campo das criminalizações. Vejo uma postura muito comum entre autores de referência que se encastelam no templo seguro do diagnóstico e da crítica. Cada passo dado na realidade por aqueles que buscam alternativas é caricaturado como equivoco ingênuo ou irresponsável, nunca como o produto falho e limitado de quem se dispõe ao enfrentamento. Por isso, não me identifico com as trincheiras da criminologia como espaço para o cultivar de um pensamento verdadeiramente rebelde. É um campo que trabalha com servilismo ao Estado que critica; não topa romper teoricamente com a leitura liberal da democracia e dos direitos humanos de forma radical; segue surda à contribuição de grandes nomes do pensamento negro. Zaffaroni uma vez disse que a “criminologia é o saber e a arte de despejar discursos perigosos”. Já fui uma entusiasta dessa possibilidade. Hoje, acho que ou os criminólogos rompem de fato com os mandatos da branquitude que orientam suas análises ou ela seguirá sendo um instrumento subaproveitado no enfrentamento do racismo e consequentemente das violências perpetradas pelo sistema penal.

Um ponto bastante importante e inovador do corpo negro é afirmar de maneira peremptória que é possível tipificar como “projeto genocida” a ação do Estado brasileiro quanto ao povo negro. Essa afirmação segue gerando fundas controvérsias no meio intelectual e político brasileiro. Como você lida com as reações hostis a este debate?

Primeiro eu insisto em afirmar que não é inovação do Corpo Negro pautar a existência de um projeto genocida anti-negro no Brasil. De Abdias do Nascimento à Campanha Reaja isso já vinha sendo articulado e denunciado. Mas a resistência à categoria genocídio nos meios acadêmicos e políticos é muito interessante de ser trabalhada. Por óbvio, essa resistência está centrada numa das consequências mais nefastas que o racismo produz: a impossibilidade de se reconhecer o sofrimento negro. Tenho insistido em pontuar que a brutalidade dos processos de colonização nos tornou incapazes de pronunciar a dor quando essa atinge os corpos negros. É por isso que o genocídio, essa categoria plasmada no imaginário como sinônimo de vitimização horrenda e injustificável, não está à disposição para explicar os processos de extermínio que vitimam a população negra no Brasil. As reações ao debate do genocídio estão, portanto, ancoradas no sentido mais dileto do racismo, apesar de comumente se pautarem fatores jurídicos para essa suposta inviabilidade. No atual contexto, esse tipo de postura obscena fica ainda mais gritante. Estamos testemunhando o arcabouço jurídico, mais do que nunca, ser usado para legitimar as pautas políticas da branquitude em todos os espectros do poder. Pode ser lido de forma solta para acomodar tanto as justificativas de um impeachment presidencial quanto para a acusação de que isso se constitui num golpe de Estado. Quando o que está em jogo são os interesses das elites, a seara jurídica é sempre um argumento de poder. Então os intelectuais que se retorcem considerando uma heresia quando falamos de genocídio do povo negro, são os primeiros a dizer que estamos vivendo uma espécie de ditadura, quando em ambos os casos o que está em jogo é uma leitura jurídica que dê conta do animus das práticas e fuja ao dogmatismo. Pessoalmente, confesso que não me implico nesse tipo de esforço de convencimento. Minha tarefa não é justificar o genocídio, sua existência é meu ponto de partida. Me animam as discussões que propõem formas de desmobiliza-lo.

Recentemente houve no Brasil uma série de eventos para discutir os 30 anos da Constituição Federal e para avaliar as conquistas deste período em termos de direitos sociais. No Corpo Negro você já sinalizava para as limitações deste debate sobre “Estado Democrático de Direito” e já destacava, por exemplo, a inefetividade da criminalização do racismo como meio exclusivo de combater a violência racial. Como você avalia esta questão da disputa institucional e que balanço você faz desta arena para as lutas políticas dos negros no Brasil?

Acho que a questão de base é que discutir democracia no horizonte do racismo é a retificação da violência. Porque é da natureza da expropriação que o próprio racismo produz no Brasil, você poder qualificar um Estado genocida como o nosso, como democrático. Agora, cientes disso, é importante sinalizar para os esforços empreendidos por diversos grupos sociais para a melhoria das condições de vida da população e que a democracia tem funcionado como uma categoria que, para muitos, mobiliza e inspira transformações. Mas é fundamental que se entenda, em especial num momento político como o que estamos atravessando, que o direito sacrossanto de matar pessoas negras no Brasil, a produção de aniquilamentos quotidianos naturalizados, ou seja, aquilo que está no âmago do construto do racismo, é algo que não se estrutura fora da democracia. Ao contrário, o tipo de democracia que se admite entre nós depende do racismo para o seu bom funcionamento. Então, ou entendemos que estamos testemunhando o aprofundamento de privilégios e não uma ruptura com tempos idílicos, ou isso descompromete o Estado brasileiro e os governos ditos progressistas da responsabilidade pelos empreendimentos genocidas que sempre estiveram em curso. Para mim, os 30 anos da Constituição se coroam como o reflexo de elites indispostas a conciliar, assumindo abertamente sua sanha por carne negra e é dada a hora de elevarmos o tom daquilo que propomos. A ruptura com as promessas vazias da igualdade, o desencantar com as fraudes da representação política, faz da resistência negra um aporte de transformações não somente da realidade das pessoas negras, mas da viabilidade política e social do Brasil. Acho que a democracia dos brancos, acuada pela espreita da ditatura, tem de ser sentenciada por nós. Nossa tarefa no acompanhamento das lógicas institucionais é, portanto, enfrentar os desmandos de um governo autoritário que se impôs de forma ilegítima ao tempo em que pensamos em formas de alterar a própria gramática do que se entende por democrático. Num mundo em que o Estado aporta nossa morte, nos falta o vocabulário para expressar o que significa um convívio social harmônico. A verdade é que sejam quais forem os meios que usemos para empreender nossa resistência, ela tem que superar os melindres das disputas entre os segmentos das elites, que em última instância representam diferentes metodologias de controle e eliminação dos corpos negros.

Depois de publicar o “Corpo Negro” você dirigiu o filme “Além do Espelho”, que discute a questão do genocídio do ponto de vista da memória e das narrativas do movimento negro, e em seguida lançou o livro “Utopias de nós desenhadas a sós”, que tematiza questões de afetividade, das mulheres negras e sublinha as deformações que o machismo, o sexismo e a violência racial produziram na relação entre homens e mulheres negros na diáspora. Como você avalia estas performances de violência nas quais homens negros também estão engajados? Como você vê a relação entre mulheres e homens dentro deste debate sobre genocídio?

O racismo é um processo que para dentro das comunidades negras sobrevive com o acirramento das questões de gênero e sexualidade. O principal pilar da dominação esteve e está calçado na desarticulação comunitária. Fomentar a autofagia sempre foi fundamental para o nosso controle. E nesse mosaico das hierarquias internas, as masculinidades cis-heteronormativas tem de ser pautadas. Para mim, sem um debate franco sobre as masculidades negras, nossas chances de pensar horizontes verdadeiramente renovados são inviáveis. O questionamento sobre as consequências de se exercer o mandato da masculinidade no horizonte do racismo é central. Do meu ponto de vista, ou o genocídio dá conta dos estupros, das costelas quebradas, das violências que abatem pessoas LGBT e de todas as outras violências que nos assaltam dentro de nossas casas e comunidades, ou estamos hierarquizando sofrimento negro. E nessa balança são as mulheres negras que tem de secundarizar suas urgências e acomodar as demandas dessas masculinidades que não se repensam. Acho importante considerar esforços em curso que têm pautado essa questão. Existem muitos homens mobilizados nesse sentido. Acho fundamental, é claro, que entendamos a pluralidade de vivência das masculinidades negras, para não reduzirmos tudo a violência e brutalidade. Mas sinto que ainda há muita resistência a se estabelecer um debate honesto sobre essa questão. Inegavelmente, há um custo muito alto em ser um homem negro, em especial exercendo um tipo de masculinidade moldada pela violência do racismo. Estamos falando de morte. Da morte como uma sentença provável. Mas é preciso pontuar que, no mundo das nossas precariedades, os privilégios associados ao exercício desse mandato, que estão fundamentalmente voltados a terem o domínio sobre as nossas comunidades, têm feito com que muitos homens assumam essa performance. Agora, é preciso lembrar que esse debate não se reduz a pautar as dores das mulheres negras, suas solidões, suas demandas e tudo o mais que o sexismo tão violentamente taxa de prosaico. Estamos falando de trabalhar os dilemas dos homens negros nas violações que os assaltam de frente. Homens que tem sobre si um arquétipo que os quer impedir de sentir, de expressar afetividade, de desenvolver estratégias de autocuidado. E isso tem efeitos no debate de pautas centrais para nós. Se tomamos a questão da polícia, por exemplo, da presença expressiva de policiais negros nas baixas patentes, o tipo de ação que empreendem e a situação em que se encontram, vemos a urgência de se politizar a discussão sobre masculinidades negras. Talvez seja essa uma das maiores dificuldades de se debater polícia atualmente. Sem um mergulho profundo nos efeitos do racismo para a vulnerabilização dos homens negros e a produção de uma estética ilusória de poder baseada na violência, não temos como compreender de fato essa questão. Então, para mim, o debate de gênero é central se quisermos dar conta das inúmeras facetas do genocídio e entendo que é dada a hora de enfrentarmos essa demanda de frente.

Quando o governo federal iniciou a intervenção federal no Rio de Janeiro você escreveu que aquele episódio demonstrava “que o apetite social por carne negra é o grande combustível que libera o engavetamento dos parâmetros jurídicos”. Nas últimas eleições presidenciais este ímpeto se tornou ainda mais explícito. Como você pensa que é possível denunciar e resistir a este avanço de autoritarismo e violência?

Acho que poderia te responder essa pergunta de muitas maneiras. Mas nesse momento me ocorre pautar a ousadia da concretude. Para mim, resistir a esse avanço conservador significa ter a coragem de se voltar para as necessidades básicas da população negra. O relato da fome, que nunca desapareceu de nosso quotidiano, já começa a voltar com mais vigor. As ruas já começam a ficar apertadas para tantos corpos abandonados. Quero aprofundar os sentidos de uma militância que parta dessa realidade material. Projetos de duas ou três pessoas que possam alimentar outras, esforços de garantir roupas limpas para pessoas em situação de rua. O que pode parecer prosaico e assistencialista é essencial. Reencantar e disseminar um tipo de militância – já praticada por muitos – que se preocupe menos com uma aparência de radicalidade e mais com a pragmática da nossa condição. Acho que, mais do que nunca, é preciso abraçar um legado da resistência negra que abarca estratégias distintas, que passam pelas disputas no âmbito das retóricas que inspiram, das movimentações que pressionam as decisões institucionais e das ações autônomas que nos garantem a vida no quotidiano. Sinto que temos nos ocupado muito das dimensões alinhadas às disputas ideológicas e institucionais e acredito ser necessário conectar esses esforços com ações autônomas contundentes que toquem de fato a vida das pessoas.

Por fim, que tipo de balanço você faz destes dez anos da publicação do livro Corpo Negro Caído no Chão? O que você acha que são as novas peculiaridades do projeto genocida do Estado Brasileiro hoje?

Acho que o que mais me impressiona é o quanto as peculiaridades dizem pouco sobre nós. É claro que estamos num mundo diferente. As tecnologias se multiplicam para saquear nossas informações, para vender nossos dados pessoais a grandes corporações internacionais, para nos tornar pessoas subordinadas, passivas em aplicativos sempre ao alcance das mãos. Mas o que me assalta é que esses novos contextos não desatualizam denúncias forjadas há décadas, há séculos. A desumanização que o racismo enseja faz de nomes como Luiz Gama e Lelia Gonzalez, passando por João Cândido e Beatriz Nascimento, mais do que marcos importantes para o estudo da história da resistência negra. A verdade é que suas reflexões até hoje mobilizam um tipo de conteúdo político que reflete a realidade. É assustador entender que o terror infligido às comunidades negras não foi desarticulado no decurso do processo histórico no Brasil. Com isso não quero dizer que nada mudou e nossos esforços não pressionaram por mudanças, mas que a matriz fundamental do genocídio, segue cobrando sua fatura independentemente dessas atualizações. Isso implica em constatarmos o quanto a luta negra é atual. As insinuações de que militar é algo ultrapassado e de que há um saturamento em se falar da questão racial são uma falácia. A energia que pulsa nas veias daqueles que se comprometem com nossa sobrevivência, com nossas demandas, com nossas realizações é o único combustível capaz de alterar o curso da história do nosso povo. Resistir, como João Vargas pontua, é um imperativo ético, é o que nos dá asas para projetar novos horizontes, é o que faz valer continuar a caminhada.




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