Reflexões


O MEDO QUE VALE OURO

O ritmo está acelerado. Dormir é ter certeza de amanhecer num futuro que sonha em acordar no passado. Nessa ambiência, há uma chuva mal encontrada de palavras e imagens que projetam o caos como o dado a ser controlado. A figura do “Mercado”, que antes manipulava os movimentos do tabuleiro com discrição, passa a comandar todo e qualquer argumento da discussão política. O governo explicita seu papel de sócio maior dos arranjos econômicos e trabalha para entregar lucros fáceis e garantir consciências tranquilas.

Para sustentar a ordem numa manobra tão brusca, é preciso acionar a violência sem maiores reticências. Publicizar a repressão como um dado natural e necessário é, portanto, retórica essencial para justificar os desmandos. Na disputa acirrada das elites, a corrupção é acionada como a categoria que seleciona os grupos politicos a serem afastados do poder. Aqui, os ares sóbrios usam a verborragia jurídica para deformar a constituição, punir indivíduos exemplarmente e deixar as estruturas intactas.

Mas acenar com medidas para a “calmaria” dos agentes econômicos não é suficiente. O desmonte das políticas públicas de base, a retirada de direitos de trabalhadores, a privatização de estatais estratégicas e tantos outros vilipêndios que se avolumam, demandam um tipo de adesão social profunda. A propaganda que legitima e sustenta o golpe, fica evidente, está ancorada no racismo.

O espetáculo da intervenção militar no Rio demonstra que o apetite social por carne negra é o grande combustível que libera o engavetamento dos parâmetros jurídicos. No controle do alardeado caos, pode-se finalmente soltar o grito engasgado na garganta e explicitar o reclame por morte sem constrangimentos.

O exército cobra cachê elevado para participar da encenação, mas a popularidade das ações anunciadas faz valer a pena o desembolso da verba. Querem as garantias para os massacres sem meias palavras. Invasão de domicilio, abuso de autoridade e homicídio fazem parte do pacote encomendado. Prometem serviço limpo e, em troca, exigem passe livre e imunidade absoluta. Afinal, se o gozo é coletivo, não há porque ficar isolado no banco dos réus da história. Desse veneno não topam provar novamente.

Nessa equação estreita, o governo entende que o contraponto das medidas “impopulares” é a autorização do linchamento a céu aberto. Pouco importam as montanhas de dados, fatos e análises que sinalizam que a eficiência do sistema de justiça criminal passa por estratégias opostas ao que está sendo proposto. Afinal, no Brasil, o sufocamento da população negra é remédio poderoso para amenizar ansiedades.

O ataque é então autorizado com a inversão do ônus político e social que levaram a esse estado de coisas. Foram os desmandos do governo local que levaram o Rio à mendicância institucional para o pagamento de salários; a viabilização de serviços públicos básicos e a manutenção da máquina pública. Agora é contra a parcela da população que mais sofreu com o desgoverno que se abrem as artilharias do extermínio.

Trata-se do reconhecimento inequívoco do alcance da propaganda punitivista do racismo. Se os arranjos que beneficiam grupos econômicos são feitos de meias palavras, de negociatas pouco acessíveis, de reformas com parágrafos complexos, é preciso ter uma plataforma que traduza de forma simples e direta as “ações positivas do governo”. A verdade é que o derramamento de sangue dessa massa favelada pintada como disforme e criminosa, resguarda, fortalece e credencia um governo sedento de legitimidade. O medo de gente preta vale ouro e está sendo usado como o grande trunfo para o avanço do conservadorismo no país.


Ana Flauzina é professora da Faculdade de Educação da UFBA


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