Reflexões
O QUE ME INTRIGA...
Quando nos debruçamos sobre a realidade contemporânea no que diz respeito à denúncia de casos de discriminação racial e racismo nos deparamos, às vezes, com fatos aparentemente desconexos. Pode ilustrar isso o comunicado da Rede Globo divulgado ontem (22.12.2017), assinado por seu diretor de jornalismo, Ali Kamel, e pelo jornalista William Waac.
Ambos reiteram seu repúdio ao racismo, apresentado como um “sentimento abjeto”. Waack desculpa-se por eventuais ofensas, é elogiado pelos serviços prestados à empresa e o caminho escolhido consensualmente pelas partes foi o encerramento do contrato de trabalho.
O que nos diz de fato o comunicado? O que levou ao rompimento do contrato entre o profissional reputado como de primeira linha, avesso ao racismo, e a empresa que se define visceralmente antirracista?
Ao formalizarem o rompimento, acentuaram que partilham na essência os mesmos valores. A negação do racismo se faz costumeiramente entre nós por meio de autodeclarações enfáticas e dissociadas da “prática” de atos concretos.
Os parceiros ficaram nesse nível de generalidades e não dedicaram mais que uma vaga alusão ao episódio de bastidor, um comentário racista, que teria gerado, quando divulgado com atraso, a pressão das redes sociais.
É certo que mais detalhes, mais minúcias sobre o episódio fortaleceriam sua verossimilhança. Parece que quanto mais distância do fato concreto, melhor para as partes. Há alusão a uma vaga ofensa no comunicado, pedem-se desculpas, mas quem são os ofendidos?
A atribuição de negatividades e limites às pessoas negras, como dimensão de sua constituição genética, atinge a todos e as pessoas atingidas têm o direito de processar o agressor e de não ficarem satisfeitas nem com sua demissão nem com o jogo sutil da empresa de afirmar ser o antirracismo parte de suas “vísceras”.
A meu ver, para desestimular o uso de instrumentos coletivos de defesa de direitos, o comunicado de ontem e a nota anterior enfatizam os “valores” e “os princípios”. Embora um fato tenha motivado a demissão do jornalista, o fato importa pouco.
Não se pode, contudo, negar a evidência do desligamento súbito de um jornalista que supúnhamos surfando na crista da onda conservadora mais alta. Conhecemos realmente todos os fatos que envolvem esse episódio? A principal razão do desligamento foi realmente o vídeo só agora exumado?
No admirável mundo novo em que vivemos, a revista “Veja” é a favor das cotas, o Estadão faz circular, em coluna de jornalista especializada em direito internacional, a expressão “genocídio negro” do modo que o movimento social gostaria que fosse usada, e a rede Globo declara-se visceralmente antirracista, seja lá o que isso signifique de fato.
Há profunda contradição entre a ausência ou sub-representação de grupos humanos inferiorizados pelo racismo na programação da emissora e a sistemática negação de que tal realidade seja decorrência natural de hierarquizações racistas.
Essa ausência ou sub-representação são fundamentais para compreendermos o alto nível de abstração de declarações de tipos como Kamel e Waack. Suas afirmações grandiloquentes não incluem, portanto, a realidade concreta da programação. Não só, sinto que algo nos escapa aí. Mas no admirável mundo novo não temos o direito de supor nada e alguns funcionários negros têm motivos pessoais para legitimarem essas abstrações. E fizeram também seu trabalho com eficiência.
Edson Lopes Cardoso
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo