Reflexões


OS PALHAÇOS E A LIÇÃO DOS NEGROS DE JAÚ

Eliane Cantanhêde entrevistou para “O Estado de S. Paulo”, em 11 de dezembro de 2016, o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, e perguntou-lhe se era viável a candidatura de Bolsonaro a presidente da República.

A resposta do general, afirmou Cantanhêde, não era direta, mas dizia muito: “Bolsonaro, a exemplo do (Donald) Trump, fala e se comporta contra essa exacerbação sem sentido do tal politicamente correto”.

Como se viu na palestra na sede da Hebraica, no Rio de Janeiro, no dia 3 de abril, essa condição necessária do presidenciável (voltar-se contra o politicamente correto) se expressa pela repulsa, aversão e execração de negros, indígenas, mulheres, homossexuais, entre outras identidades.

Não sei até onde podemos dimensionar, em termos eleitorais, o alcance e apoio à pregação racista, machista, homofóbica e xenófoba de Bolsonaro. A fala de apoio do comandante do Exército, sua blindagem ostensiva no Congresso, o convite da Hebraica, os aplausos delirantes e algumas pesquisas eleitorais preliminares sugerem que Bolsonaro é um homem ajustado a seu meio.

Desconfio das críticas que o definem como desajustado e patológico. Sobram indícios, a meu ver, que aproximam as afirmações do presidenciável e muitas práticas políticas, econômicas e sociais, administrativas e policialescas vigentes entre nós.

Vamos vencer nossas resistências e admitir, por exemplo, que há afinidades entre a metáfora desumanizadora das arrobas de gado gordo e preguiçoso pastando nos quilombos e a imagem real do grande matadouro de gente negra que é o Brasil. Sua pregação, convenhamos, corresponde ao que esperam dele amplos setores da sociedade brasileira.

Outra coisa: se você está se sentindo agredido pela fala do palhaço, impeça-o de continuar com o espetáculo. O palhaço Arrelia (Waldemar Seyssel) contou certa vez um caso que teria acontecido na cidade de Jaú, no interior de São Paulo, numa data imprecisa na segunda década do século XX. (Arrelia e o circo, Edições Melhoramentos, 1977, pp. 12-13.)

Um palhaço chamado Serrano era grande atração do Circo Chileno, propriedade do tio de Arrelia, que era então um garoto. Serrano, com o violão, cantava, para grande agrado da plateia branca, uma canção, um lundu ofensivo à mulher negra.

Na noite seguinte à estreia, antes do espetáculo, uma representação de pessoas negras, alguns já muito exaltados, combinou com o proprietário a retirada da música racista do repertório do palhaço Serrano.

Assim foi feito, mas “Quando chegou a hora do Serrano, ele entrou sob estrondosa roda de palmas por parte da plateia, que estivera no circo na noite anterior. Serrano contou piadas, historietas, etc. Pegou no violão e cantou uma modinha da época, agradando muito. Todavia, os espectadores da véspera, que haviam gostado do lundu da preta, começaram a gritar:

- O lundu da preta!

E os pretos gritaram:

- Não canta, não!

E os outros – que eram os brancos – berraram:

- Canta, sim! Canta o lundu da preta!

Fez-se uma gritaria dos infernos! Nisto, levanta-se o delegado e diz para o palhaço Serrano:

- Pode cantar o lundu da preta!

Formou-se um alvoroço daqueles. O delegado, para mostrar autoridade, mandou chamar dois praças, colocou-os na frente do picadeiro e disse:

- O Serrano pode cantar!

E o Serrano começou a cantar, debaixo de tremenda vaia dos pretos e palmas dos brancos. Terminada a canção saiu, ainda debaixo de vaias e aplausos, mas o pior aconteceu quando acabou o espetáculo. Os pretos ficaram do lado de fora, esperando: queriam pegá-lo. O delegado, então, ficou de sentinela com os praças, aguardando a saída do palhaço. Quando Serrano surgiu entre os dois soldados do destacamento local, foi a maior vaia que já vi na minha vida. Os pretos jogavam pedras, laranjas e ovos, gritando:

- Vamos linchar ele!

Os soldados tiraram seus revólveres e deram tiros para o ar. Foi uma correria louca! Tudo terminado, Serrano e meu tio foram para o hotel. Serrano disse ao tio Roberto:

- Olhe ‘seu’ Roberto, é melhor eu ir embora. Passa um trem agora, às duas horas para São Paulo e eu vou nele.

Serrano assim fez e nunca mais ouvi falar dele.”

Os ativistas que travam a luta da resistência devem se organizar para seguir a lição dos negros de Jaú, no início do século passado, e botar para correr os palhaços que, a exemplo de Bolsonaro, nos agridem com seus espetáculos.


Edson Lopes Cardoso
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo



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