Reflexões


Aprender com Luiz Orlando

O ambiente da luta política contra o racismo, o ambiente de movimento negro, parece também saturado de pessimismo e acusações mútuas. O fato é que todos os lados da disputa se defrontam com emergências assustadoras – cada um se encolhe, cheio de apreensões, na defesa justificada ou não de suas prerrogativas.

Como contribuição modesta à harmonia política, sugiro que se abra um espaço mínimo para considerarmos a figura de Luiz Orlando. Excetuando-se Lélia e Abdias, poucos nomes têm recebido o merecido reconhecimento entre nós. Penso que se deve destacar o modo como Luiz Orlando assumiu suas responsabilidades perante a história do movimento negro e perante sua própria consciência.

Decorridos nove anos de sua morte, sua memória já vai rareando fora dos círculos de cineclubistas. Queria falar um pouco de antes do cinema, do período mais remoto de sua juventude. Para mim, Luiz Orlando foi primeiro “Batista”, um codinome seu em 1968. Fui apresentado a Batista na Biblioteca Pública, na Praça Municipal de Salvador, por Roberto Santos, o “João Luís”. Havia um grupinho que ficava na porta da biblioteca depois que ela fechava, conversando. Jovens em tempos sombrios. Roberto Santos eu conheci num grupo de estudos da Ação Popular, formado no Colégio da Bahia. Fui resgatado a tempo pelo amigo.

Roberto Santos foi decisivo também, mas Luiz Orlando emitia uma luz mais serena, contornava as asperezas do debate com sabedoria. Eu os conheci profundamente amigos, complementares. A questão era que Luiz Orlando assumia responsabilidades especiais com seu entorno de um modo – como dizer?

Para que os mais jovens possam compreender o modo como Luiz Orlando assumia responsabilidades coletivas, basta dizer que ele foi a primeira biblioteca itinerante de que tivemos notícia. Estimulava a leitura, disseminava novidades, emprestava, doava. Doava, isso mesmo, dava, presenteava. Adivinhava seus interesses, percorria sebos e livrarias, desencavava preciosidades. Biblioteca itinerante que não era kombi nem van. Luiz Orlando deambulava, incansável, pelas ruas de Salvador.

Conheço muito sonho de ativista que projeta um destino público para os livros que reuniu com muita dificuldade. Ironildes Rodrigues, para citar um exemplo, vinculado ao Teatro Experimental do Negro e responsável pela alfabetização de adultos, deixou registrado em seu “Diário de um negro atuante” que de seu testamento deveria constar “que o apartamento em que moro seja transformado num centro de estudos, principalmente dos problemas afro-brasileiros, com os 4 mil livros servindo de consulta aos estudiosos ou para os alunos pobres, que não podem comprar os compêndios indicados pelo professor” (revista Thoth, Brasília, n. 3, set./dez. 1997, p. 155).

Biblioteca tem que servir a uma coletividade, acrescentava Ironildes. Sonho meu, sonho seu e dela. Todo mundo sonha sua Saubara, para lembrar Jônatas Conceição, outro encantado. Não sei se as disposições testamentárias de Ironildes foram cumpridas, quero crer que não. Mas Luiz Orlando, desde a juventude, transformou-se em biblioteca pública itinerante e marcou com sua atitude uma porção de espíritos desarvorados.

Nós sempre o encontrávamos entre a Biblioteca Pública (onde hoje é o Sucupira) e o Gabinete Português de Leitura (a biblioteca do Goethe veio depois). Carregar livros era uma ousadia no período e Luiz Orlando personificava o desafio, conduzindo exemplares com os quais exercitava sua fraternidade política, coletiva.

Ele não era tão mais velho, talvez três ou quatro anos. Parecia ter mais porque seu fruto maduro era o estímulo à solidariedade que provocava em nós. Eu emitia algum sinal que ele soube captar e que eu mesmo ignorava a existência. Se eu parecia, a meus próprios olhos, irremediavelmente perdido, o fato é que não estava. Quem sabia disso, quem poderia saber? O certo é que com Luiz Orlando seu desamparo não virava galhofa, você sabia que teria o tempo de que precisava para assumir responsabilidades com o fardo da identidade.

Nos anos 80 em diante, o cineclubista e animador cultural iria levar o cinema e o vídeo para as associações de bairro, as que existiam e aquelas que seu entusiasmo contribuiu decisivamente para que existissem. Estimulou novos hábitos e práticas culturais, articulou pessoas em muitas cidades do país. Minava o controle da informação disseminando livros, filmes e vídeos, formando plateias e produtores, aprofundando a recepção crítica. Acho que temos a chance de renovar nossas práticas, resgatando o exemplo de pessoas como Luiz Orlando do esquecimento coletivo. Axé.


Edson Lopes Cardoso.
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo.



Participação imprescindível

“Não podemos mais consentir que o negro sofra as perseguições constantes da polícia, sem dar uma resposta.” Esse limite foi definido pela carta convocatória do MNU para o ato público de 7 de julho de 1978, em São Paulo. “Contra a opressão policial” é palavra de ordem essencial da entidade, inscrita em seu registro de nascimento.

Mas a denúncia do assassinato de Robson Silveira da Luz, torturado por policiais, e da discriminação sofrida por jovens negros no Clube de Regatas Tietê, foi acompanhada da convicção de que esses casos “não darão em nada”, de que “serão mais dois processos abafados e arquivados pelas autoridades”.

Quantas experiências dessa natureza foram acumuladas pela população negra e suas centenas de entidades e organizações espalhadas pelo país? Uma experiência individual e coletiva intensa, dramática, nunca validada e reconhecida pelos governos, autoridades judiciais, meios de comunicação, formadores de opinião, partidos políticos.

O racismo, ali no limite entre vida e morte, como parte essencial do que os negros conhecem como sua realidade cotidiana. “A maioria da população tem medo da PM” é o título de reportagem recente da “Folha de S. Paulo” (31/07/2015, p. B 8) e refere-se a experiências que foram vivenciadas e acumuladas por descendentes de africanos no Brasil, desde muito tempo, agora finalmente reveladas aos leitores pelo DataFolha!

Ainda em 1978, o advogado Virgílio Luiz Donnici publicava o artigo “Criminalidade e Estado de Direito” na revista Encontros com a Civilização Brasileira (v. 5, novembro de 1978, pp. 201-235), de que extraio o seguinte trecho:

“Outro aspecto da criminalidade tradicional é que as vítimas não procuram a polícia, com a convicção pacífica de que ela não resolverá a situação, o que está a merecer uma ampla pesquisa para esclarecimento da opinião pública, sob a forma da indagação seguinte: Polícia – protetores ou opressores?”

A pesquisa do DataFolha em 2015 e a pesquisa proposta por Donnici em 1978 mostram como o entendimento de uma determinada realidade é sempre complexo e multifacetado. As pessoas amedrontadas e oprimidas em seu cotidiano mais trivial, ou trucidadas nos cárceres e em chacinas nas madrugadas sombrias, podem ter dificuldades não de compreender a realidade, mas de aceitar a extraordinária simplicidade e superficialidade com que sua realidade será apreendida pelos outros. Ainda mais quando esses outros são protegidos pela polícia, não é verdade?

De maneira constante, ao longo de muitas décadas, os governos vêm falhando em garantir o direito à vida da população negra. Nossa cultura e nossa subjetividade transmitem essa aberração há gerações: a vida dos negros é vida sem valor. A questão que quero levantar é a seguinte: a experiência que decorre dessa rejeição extrema, por acaso senta-se à mesa de negociação, em que se afirma buscar soluções (programas, políticas, estratégias) para reduzir as altas taxas de homicídio da juventude?

Como devemos entender o apagamento de uma trajetória histórica singular, de uma riqueza tão inestimável de consequências críticas, certamente incômoda e perturbadora? Se as reuniões preparam a ação política efetiva, como prescindir da participação da população negra, de suas entidades e organizações, de suas fontes intelectuais e políticas?

Não é um paradoxo que quem se omitiu, sempre cúmplice, saiba agora o que fazer, enquanto os que vivenciam condições materiais, concretas e insubstituíveis, devam calar-se e aguardar, renunciando a contribuir para a solução dos problemas que sua realidade expõe todos os dias e que implicam em sua sobrevivência e continuidade?

A Declaração e o Programa de Ação de Durban, que estão completando 14 anos, pareciam ser um marco no reconhecimento do papel fundamental desempenhado pelas organizações negras. Mas ninguém se refere mais a Durban.

A contragosto, aqueles que ousam abordar o tema das altas taxas de homicídio de jovens na grande mídia admitem que os negros sejam as principais vítimas. Uma percepção não exatamente aguda de uma dimensão do real ostensiva. Embora estejamos ainda muito distantes de uma tomada de posição política diante do racismo e das desigualdades raciais, significa algo. Mas poderia significar muito mais.

No fundo, o racismo permanece secundário e a frase que acentua a cor das vítimas, que deveria significar que os assassinos foram educados para considerá-la uma justificação suficiente para suas condutas bárbaras, como parte essencial de larga tradição cultural, vai sendo assimilada pelo seu caráter exclusivamente formal.

O fato evidente, finalmente admitido, de que os negros são as vítimas principais da violência é ou não uma experiência social, política, psicológica dos negros a ser considerada?

Ao reconhecer a cor das vítimas, não nos sentimos obrigados a priorizar o enfrentamento do racismo nem a participação política dos negros? Que reconhecimento é esse, afinal? A questão central é a recusa sistemática a considerar os negros como parte da solução.
Edson Lopes Cardoso.
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo.



A insignificância e o STF

Uma sandália de borracha no valor de R$ 16. Quinze bombons artesanais no valor de R$ 30. Dois sabonetes líquidos íntimos, no valor de R$ 48. Estes foram os produtos furtados por cidadãos brasileiros que foram a julgamento em nossa Suprema Corte no último dia 03 de agosto. No primeiro caso – das sandálias – o réu era reincidente, ou seja, já havia sido condenado por outro crime quando do furto das sandálias. No segundo – dos bombons artesanais – o crime era qualificado, o réu escalou um obstáculo para furtar, e, no terceiro – dois sabonetes – teria havido concurso de agentes, ou seja, mais de uma pessoa praticando o crime, o marido teria feito barreira para mulher furtar.

O objetivo da discussão no Plenário do Supremo Tribunal Federal era decidir se nestes casos – com as circunstâncias apresentadas – era cabível ou não a aplicação do princípio da insignificância, segundo o qual o direito penal não deve se ocupar de fatos pouco relevantes como subtração de pequenas quantias. Trata-se de um princípio reconhecido no direito brasileiro que busca impedir que o direito penal incida sobre temas de pouca lesividade como o furto de objetos de pequeno valor. Entende-se que estes casos devem ser tratados por outras áreas do direito, não pelo direito penal.

A discussão foi longa e os ministros recorreram a grandes e qualificadas teses. O doutor Luís Roberto Barroso, isolado, defendeu que por se tratar de “furto insignificante” o adequado seria considerar o fato materialmente atípico – ou, em bom português, fato que, em função da realidade (pequeno valor do objeto furtado), é irrelevante ao direito penal e que, mesmo sendo definido legalmente como crime, materialmente deveria ser tratado como ilícito civil (onde pode ser definida a obrigação de que o acusado restitua o bem ou mesmo que o ofendido peça indenização). O Ministro não estava aprovando o furto, mas, dizendo que, pelas circunstâncias, seria mais adequado que a questão fosse resolvida longe da esfera penal.

Os argumentos levantados foram muitos e muito qualificados: alegou-se que o sistema penal brasileiro não ressocializa e que, pelo contrário, apenas produz novas e mais graves violências; que é dramática a situação de superpopulação carcerária e que portanto não era razoável “mandar para cadeia” uma nova horda de pretos-pobres por fatos tão banais ou ainda a comparação com casos de sonegação em que, mesmo mediante a lesão ao erário, evita-se o acionamento do sistema penal quando não se excede o valor de R$ 20.000,00. Em outras palavras, o ministro demonstrou numa sólida argumentação que é desproporcional mobilizar o sistema penal em ilícitos como estes.

Contudo, tal entendimento não foi majoritário. Baseados num ideário geral de medo e crença excessiva na punição, os demais ministros acordaram que a Corte não deveria fixar uma tese – dar uma decisão geral sobre o tema - e que cada juiz, caso a caso, deveria analisar se era ou não possível aplicar o princípio da insignificância. Ou seja, muito “pudor” para reconhecer que o “insignificante” é “insignificante” e que, portanto, não é cabível pôr em risco a liberdade – esta sim a mais significante das garantias – em função do que é, como já verificamos, insignificante.

É um jogo de palavras que não serve para cuidar da vida e daquilo que nela é fundamental. Como em outros momentos da história das instituições brasileiras o medo interdita a realização do que é evidente. Em nome da defesa da ordem perde-se a chance de fazer justiça. É um velho cacoete nacional que durante anos adiou o fim da escravidão, que criou contenções para que os negros ocupassem lugares de prestígio e de poder e que tem interrompido vidas de jovens brilhantes com argumentos de guerra as drogas por medo de que se corrompa a família nacional. É o medo que nos paralisa.

A decisão do STF, que pode ser definida como mediana diante da tragédia diária do punitivismo nacional, revela como as nossas instituições recuam diante de grandes possibilidades de avanço. Ao invés de firmar uma decisão ousada e ajustada com o que há de melhor na doutrina sobre direito penal o Supremo Tribunal Federal escolheu uma saída moderada que frustrou a todos os que cotidianamente se debatem diante do morticínio das cadeias superlotadas, do judiciário com pilhas e pilhas de prisões provisórias sem analisar e do Ministério Público que, sem possibilidades de intervenções mais efetivas e qualificadas, termina sucumbindo ao discurso da punição, punição, punição.

Num país em que mais de cinquenta mil pessoas são mortas por ano e mais meio milhão de pessoas estão presas – uma grande parte sem julgamento ou já tendo cumprido a pena – é de espantar que o furto de uma sandália de borracha; quinze bombons artesanais e dois sabonetes líquidos íntimos não sejam, de pronto, declarados como insignificantes.

Felipe da Silva Freitas é mestre em direito pela Universidade de Brasília e membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana / BA.



Antônio Cruz/Agência Brasil

A fatura

Parece haver consenso de que o tempo da cobrança chegou. O preço elevado da fatura aquece a troca de acusações. Ninguém se dispõe a assumir a responsabilidade pelo acúmulo da dívida. De um lado, o espetáculo degradante da sombra de uma esquerda que se dissipou. A manutenção no poder passou a se impor na ordem do dia, a lógica da propina e do desvio se instalou no pragmatismo da governança possível e vemos o resultado indisfarçável em números constrangedores jorrando de poços de petróleo e negociatas espúrias.

De outro, temos um filme tipo B promovendo ganância disfarçada de moralidade. A agenda requentada dessa direita, que faz o estômago embrulhar, está em alta. Mantenedores das estruturas corruptas bradando sem constrangimento a necessidade de investigações seletivas, delações que os poupem dos esquemas e o apagamento da memória de que esse sistema corroído é herança de tempos em que seus pares habitavam o poder central.

Diante do cenário limite, as tensões escalam. A crise econômica encurta os horizontes do consumo e expõe o fato de que os avanços das políticas sociais nunca foram capazes de abalar as estruturas dos privilégios. Na hora de apertar o cinto, é o trocado conquistado a árduas penas pelos que estão à margem o primeiro a sumir de circulação.

Mas a crise não é analisada de suas entranhas, passando a ser exposta como a corrosão da estabilidade financeira e da escalada da violência contra a classe média que se ressente: por ter de reduzir o número de vistos nos passaportes, passar da escrava constante à diarista eventual, olhar à espreita pelo carro a espera do próximo sequestro relâmpago. Desse ângulo estreito, os sons de panelaços em bairros abastados e passeatas com público vip passam a ser a imagem da resistência popular à bandalheira institucional.

Enquanto isso, a vida segue seu curso para os que tem o terror de Estado como resposta patente desde os tempos das caravelas. Com um Executivo de joelhos e um Judiciário duvidoso, o Legislativo vira o eco para a resposta derradeira: a conta vai mais uma vez ser quitada no lombo da negrada. Enquanto se arranjam os termos das negociações por cargos, para se comprar os silêncios, a agenda do extermínio vai avançando sem constrangimentos.

A Juventude negra, pintada como algoz, garante o imaginário da segurança fraudulenta que se propaga. A discussão dos autos de resistência, esse salvo- conduto policial para as execuções sumárias de cada dia, é afastada pelo apetite guloso da redução da maioridade penal. A prescrição é simples: prender no atacado e matar no varejo. As ruas recebem o recado e passam à ação: a temporada dos linchamentos está aberta. O homem negro amarrado no poste dá o recado final de que o boleto será enfim liquidado.

A decadência do Brasil é desenhada como a necessidade de se substituir as elites brancas governantes e de se moer a carne negra para o reestabelecimento da ordem. Nessa dinâmica pervertida, a crise cobra a fatura dos envolvidos no processo dentro dos parâmetros morais e políticos mediados pelo racismo.

Na polarização radical das elites, o jogo passa pela perda de espaços de poder, constrangimentos públicos e processos arrastados por anos com o horizonte da prisão simbólica de alguns. No quotidiano negro, os centavos são cobrados pela luta pela subsistência que se esvai com os empregos, pela perda das perspectivas da educação que se interrompe, pelos julgamentos sumários que aceitam a vida como moeda barata nas transações parlamentares e no imaginário genocida que se aprofunda sem censura nos lares de bem.

Ana Flauzina é doutora em Direito e pesquisadora associada do Departamento de Estudos Africanos e da Diáspora Africana da Universidade do Texas em Austin (Estados Unidos)



Do racismo cordial ao genocídio simbólico

Em setembro de 2012, após a chacina de seis jovens pretos e pardos em Mesquita, na Baixada Fluminense, o jornal “O Globo” (edição de 13.09.2012, p. 18) admitiu em editorial, cujo título era “Está em curso um quase genocídio contra jovens”, que “A ideia de o Brasil ser um país de população de baixa idade está sendo mudada pela própria dinâmica demográfica e também pela força das armas”.

Com o uso do advérbio (quase) o editorial sinalizava que estava realizando, a contragosto, um movimento de aproximação. Na sessão da Câmara na última quarta-feira (15.07.2015), durante a leitura do relatório final da CPI de Homicídios de Jovens Negros e Pobres, o reconhecimento da palavra genocídio se fez com os mesmos constrangimentos e cautelas do editorial de “O Globo”, que omitia também, por supuesto, a cor dos jovens assassinados.

A relatora da CPI, deputada Rosângela Gomes (PRB-RJ), disse que foi bastante questionada nos corredores, a respeito do emprego de termos tais como racismo e genocídio. Termos estes considerados muito fortes pelos sensíveis deputados que a assediavam nos corredores. Quero crer que lhe foi sugerido um pouco menos, o quase da fórmula de “O Globo”.

Até mesmo porque o quase parece definir nossa especificidade histórica, que sempre modificou para menos o que presumivelmente apareceria em sua plenitude em outros países. Sempre tivemos, por essa leitura, menos racismo do que os outros. A atenuação alcançou seu grau máximo com o emprego inusitado do adjetivo “cordial”. Aqui alcançamos a perfeição ideológica, ninguém poderá negar isso, com a expressão “racismo cordial”. O adjetivo não exatamente determina o substantivo, mas o subordina e lhe extrai as entranhas desumanizadoras. Lembro-me das lições de minha infância remota: “o adjetivo modifica o substantivo”. Ah, criança, não queira saber quanto!

Aplicando as mesmas regras de transformação, oriundas de nossas especificidades históricas, a leitura do relatório da CPI da Câmara revelou ao mundo o “genocídio simbólico”!

Antes da votação do relatório, a deputada Mariana Carvalho (PSDB-RO) externou, no que foi seguida por muitos outros companheiros de CPI, as condições de validação do termo genocídio. Em confrontação com sua dimensão real e material (“muito forte”), o temo genocídio se atenuava ali e adquiria uma conotação “simbólica”, e era essa dimensão que ela e seus colegas se predispunham a aprovar.

Redimido pelo adjetivo, o substantivo genocídio acabou causando menos frisson que “gênero” e “orientação sexual”, varridos inapelavelmente do relatório. Na barganha, a homofobia de pastores, delegados e militares, alarmada ao extremo, acabou dando passagem ao “genocídio simbólico”, considerado um mal menor.

A leitura do relatório firmou também, ao que parece, nossa disposição de prolongarmos indefinidamente a busca por arranjos institucionais, supostamente indispensáveis para por fim ao assassinato de jovens negros. Nesse debate, inclinamo-nos a perseguir o infinito. No entanto, projeções de PEC”s, comissões e fundos não conseguem mais nem mesmo criar um horizonte de expectativas, ainda que rebaixadas.

Sobre o alcance dos pronunciamentos e debates travados no interior da comissão, mais uma vez os meios de comunicação se defrontaram com questões que afetam diretamente a população negra e fizeram suas opções. Nenhum veículo da grande mídia noticiou os trabalhos da CPI, nem as conclusões de seu relatório.

Compare a reação da mídia norte-americana aos eventos recentes envolvendo o assassinato de pessoas negras e seu repúdio pelas comunidades. Analise e compare também o impacto, o espaço e o prestígio do espaço ocupado pelo noticiário desses mesmos eventos e reações na mídia brasileira. Até o “Jornal Nacional” produz manchetes nas quais policiais atiram em pessoas negras. Nos Estados Unidos, claro.

Veículos que, por decisão de seus proprietários e editores, não aceitam noticiar a cor da vítima no Brasil, o fazem, contudo, na primeira página se o fato ocorreu em um país caracterizado como racista, em oposição ao nosso, reino de bem-aventurança etnicorracial. O editorial da Folha de S. Paulo (“Amarildo, 43”, em 03/08/2013) que se referiu a Amarildo, trucidado no Rio, é um clássico no gênero. Amarildo, para a Folha, era ajudante de pedreiro e tinha quarenta e três anos. Sua cor não era uma variável a ser levada em consideração, assim como sua extensa rede de familiares no morro, etc.

A questão central no tema do enfrentamento ao racismo e no fim das práticas homicidas contra a população negra foi, de todo modo, escamoteada ou subdimensionada na apresentação do relatório da CPI. A questão é: uma população ameaçada em sua continuidade pode reverter a tendência de extermínio sem tomar parte nas decisões que afetam sua vida de modo tão trágico e decisivo? Sem o fortalecimento de sua organização política, sem o empoderamento de suas comunidades?

Quais as medidas concretas sugeridas no relatório da CPI para estimular a participação da população negra? Reconhecemos suas entidades e instituições, suas pautas reivindicativas, fortalecemos as estruturas comunitárias com participação negra?

Se as soluções propostas não contarem efetivamente com a participação da população negra desde seu nascedouro, o extermínio começa nesse ato primeiro de exclusão política. Mal ou bem intencionado, não importa, ninguém deve ser porta-voz nem arrogar-se o papel de testemunha das atuais condições de sobrevivência da população negra. Assim, com essa usurpação rotineira, tanto à esquerda quanto à direita, nossa presença histórica transforma-se numa farsa e não há perspectivas de mudança nas estruturas de poder, das quais os negros são sumariamente excluídos. Há, portanto, evidências indiscutíveis, finalizado o trabalho da CPI, de que os assassinatos continuarão a acontecer impunemente em todo o país.
Edson Lopes Cardoso.
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo.



Começará em casa, se for verdadeira

Na edição do Jornal Nacional, rede Globo, da última sexta-feira (03.07.2015), William Bonner e Renata Vasconcelos informaram sobre agressões racistas que visaram a apresentadora do tempo, Maria Júlia Coutinho.

Bonner relatou que “cerca de 50 criminosos publicaram comentários racistas de maneira coordenada”, na própria página do JN. A data escolhida pelos agressores, uma daquelas surpresas escondidas no calendário de eventos, é o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial.

Para quem não é precavido, como eu não sou, um dia inesperado que, segundo consta em alguns espaços na internet, alude à legislação revogada pela Constituição de 1988 e trata-se de uma homenagem a Afonso Arinos!

Lembrei-me de Perelman: “É porque uma moeda está em circulação e possui um valor que se dão ao trabalho de fabricar moeda falsa”.

Embora o JN seja sempre suspeito para nós de urdir artifícios e enganos, o relato dos apresentadores soa verossímil: milhares de protestos vindos de todo o país, reações do Ministério Público no Rio, “que pediu à promotoria de Investigação Penal que acompanhe o caso com rigor”; em São Paulo, um promotor criminal “instaurou inquérito para apurar os crimes de racismo e injúria qualificada”.

Bonner informou ainda que a própria rede Globo “está estudando as medidas judiciais cabíveis”. A coisa está tão redonda que pode não levar a nada, você me entende? E pode apenas reforçar a argumentação dos que tratam o racismo como uma atitude “socialmente constrangedora”, sem maiores consequências. E pode sair daí um “caso exemplar”, comandado pela rede Globo? Um álibi extraordinariamente poderoso que o réu erguerá, doravante, diante de todos aqueles que o acusam?

Se o fantasma da lei Afonso Arinos fez uma aparição no calendário de lutas, o que mais não será possível nesse grande casarão mal-assombrado em que se transformou o país?

E Maria Júlia? Nós pudemos ouvi-la, instada por Bonner, na mesma edição do JN. E gostei da fala, contribuiu para vencer resistências e afastar a impressão de fingimento, de artifícios promotores de audiência. Num ambiente em que se procura, invariavelmente, suprimir qualquer referência positiva ao ativismo de Movimento Negro, Maria Júlia Coutinho fez rápida alusão ao perfil militante de seus pais. Eles lhe transmitiram orientações positivas no sentido de fortalecer a consciência de seus direitos:

Muita gente imaginou que eu estaria chorando pelos corredores, mas na verdade é o seguinte, gente: eu já lido com essa questão do preconceito desde que eu me entendo por gente. Claro que eu fico muito indignada, fico triste com isso, mas eu não esmoreço, não perco o ânimo, que eu acho que é isso que é o mais importante. Eu cresci numa família muito consciente, de pais militantes, que sempre me orientaram. Eu sei dos meus direitos. Acho importante, claro, essas medidas legais serem tomadas, até para evitar novos ataques a mim e a outras pessoas.



Tudo já era perceptível desde o início. Aqui estamos a léguas de distância das erupções efêmeras das “redes sociais”. A sua percepção de si mesma se fez em um mundo no qual se colocava a questão do preconceito. Tratar com ela, ocupar-se dela significa enfrentá-la e combatê-la desde sempre, sem esmorecer nem perder o ânimo.

Ela se fortaleceu no ambiente familiar, não em frente da TV, está claro isso. A “questão do preconceito” é, evidentemente, o modo como sou visto pelos outros. A questão do preconceito contra os negros envolve ataques e agressões diárias. A grade de programação das televisões, uma manifestação inequívoca de negação e rejeição, não contribuiu para fortalecer Maria Júlia..

Toda campanha antirracista é bem- vinda. Mas uma campanha conduzida pela Rede Globo não poderá, num passe de mágica, apagar a compreensão de que as virtudes da campanha serão avaliadas por sua aplicabilidade ao universo da própria Rede Globo.
Edson Lopes Cardoso.
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo.



O lenço

a Ângela Gomes

Carolina Nabuco, filha de Joaquim Nabuco, é autora de Oito Décadas, um livro de memórias, editado pela José Olympio em 1973.

Na primeira parte, que corresponde aos seus dez primeiros anos, de 1890 a 1900, a autora refere-se a uma ex-escrava, envelhecida, que continuou residindo em Maricá, no Rio de Janeiro, após a abolição, quando a fazenda que pertencia a seu avô materno, José Antônio Soares Ribeiro, Barão de Inohan, entrara em decadência.

O nome da ex-escrava é Henriqueta e deixemos falar Carolina:

Ela fora, nos tempos da escravatura, responsável pela enfermaria da senzala e pelo tratamento dos escravos doentes ou acidentados. Antes de receber esta incumbência esteve, moça ainda, mandada por seus senhores para ganhar prática, num hospital no Rio. Ouvi contar dela (e esse feito despertou-me ilimitada admiração) que salvara a vida de um homem estripado por um touro. Recolocara-lhe os intestinos, após lavá-los num córrego próximo, e recosera-lhe o ventre conforme as regras da cirurgia. Era uma preta alta e magra com um ar de respeitabilidade que as outras velhas não tinham, talvez por causa do lenço que trazia amarrado à cabeça, salvando-a do desmazelo dos cabelos selvagens ou encarapinhados das demais moradoras da ‘rua’ (chamavam assim à antiga rua da senzala). Henriqueta era mulher realizada pela vocação médica que era sua. Continuava ativa, servindo a vizinhança como parteira, doutora e distribuidora de ervas aptas às curas.



Antes de assumir a responsabilidade de cuidar de escravos doentes e acidentados, Henriqueta foi mandada a um hospital para treinamento. Não sabemos se as coisas se passaram exatamente nessa ordem, provavelmente não. O relato de um de seus feitos que chegara a Carolina beira o fantástico, mas atesta que o treinamento foi efetivamente assimilado (“conforme as regras da cirurgia”). Habilidade, conhecimento, atitude, iniciativa pessoal.

A narração de Carolina faz alusão a uma vocação médica, no exercício da qual Henriqueta se realiza. Há saberes adquiridos por Henriqueta, mais formalizados, de que Carolina conhece seguramente a fonte. Outros, ela intui vagamente e sua dimensão mais concreta aparece relacionada ao conhecimento de “ervas aptas à cura”. A escolha de Henriqueta para as funções que desempenha exclui a comunidade desde o início do relato, o que parece muito pouco provável.

Aqui temos uma brecha para percebermos que Carolina pode ignorar muito sobre Henriqueta, seus saberes e suas habilidades, e sobre as fontes de sua respeitabilidade. “Talvez por causa do lenço...”, pensa Carolina.

A origem da respeitabilidade de Henriqueta, de seu reconhecimento na comunidade, quando associada ao lenço que lhe cobre os cabelos pode soar pueril à primeira vista. No entanto, precisamos atentar para o uso no texto do verbo “salvar”.

Em sua primeira ocorrência, Henriqueta “salva” o homem que fora estripado pelo touro. Na segunda, Henriqueta “foi salva” pelo uso do lenço de parecer selvagem e desmazelada como outras mulheres da rua da senzala.

O alcance social, na visão de Carolina, do fato de Henriqueta esconder os cabelos “selvagens” é imenso, equiparável, em sua eficácia simbólica, ao gesto salvador de uma vida e que lhe provocara tanta admiração.

Carolina percebe assim que a cabeça coberta de Henriqueta significa algo relevante, mas inventa-lhe uma justificativa, moldada por seus próprios preconceitos. Mas, podemos conjeturar, ao contrário do que pensa Carolina, Henriqueta cobre a cabeça obedecendo a códigos e significados ritualísticos e/ou religiosos dentro de seu universo cultural? O lenço pode significar a existência de determinados procedimentos de iniciação por que passou Henriqueta, reconhecidos e legitimados pelos moradores da rua da senzala? Não sabemos. Entretanto, é seguro que Carolina lê o gesto dentro dos significados estritos que lhe dita o preconceito.

Deixamos falar Carolina, mas não podemos deixar falar Henriqueta. Podemos compartilhar a memória de Carolina, mas um silêncio recobre em nossa história pessoas, experiências, memórias. Um silêncio que desafia nossa própria sobrevivência. Não sobrevive um coletivo impedido de compartilhar sua própria experiência - a qual simplificada, distorcida, se transforma em alguma coisa completamente diferente: “Talvez por causa do lenço...”.
Edson Lopes Cardoso
Jornalista e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo



"Menino-Homem"

Quero me ocupar das tuas inconsequências de menino arrogante

Dessa tua pretensão de ser inabalável

Te salvar da tua estupidez de trocar os estudos, pela pelada do fim da tarde

Quero conter essas urgências que te fazem roçar seu corpo nessa sua namorada tão sedenta quanto tu

Evitar ladainhas de crianças e títulos de avó que não me convêm

Mas hoje, comprando as velas que sopras amanhã, essas preocupações me soam como privilégio que não tenho

Seu corpo franzino de menino preto começa a ser transformado pelos hormônios e não posso evitar o que está por vir

A identidade registra 16 em poucas horas e me dizem que seu tempo está chegando ao fim..

Eu que já rezo para que as balas não atinjam seu corpo, para que as desavenças não te cruzem os caminhos, para que as fardas não te surpreendam numa emboscada qualquer, agora me ajoelho para que não te enjaulem antes da vida te dar uma chance de amadurecer, de errar, de se redimir

A verdade é que crescer é atividade de risco
A tarefa é: ser salvos de nós mesmos
Mas com seu titulo de menino revogado
A vida deixa de ser jornada pra se tornar sina

Sina que renova em ti, as angústias do passado
Com sons de navios, de correntes, de chibatas
Sina que renova em mim, as misérias das lembranças
De filhos roubados, separados, mutilados
Sina que impõe a nós, a guerra como a única saída
Por liberdade, por justiça, por amor

Por Ana Flauzina



Crédito: Friedemann Vogel/Getty Image

"Cala-te : quem reage, dança"

Ginástica mental. Uma operação complicada para o jovem ginasta: a aceitação pragmática da negação desumanizadora. Ângelo tinha que pensar, numa fração de segundo, que o filho do treinador (Marcos Goto) era parte do grupo e que sua carreira muito provavelmente dependia da reação à agressão racista. Quem reage, recebe o que Aranha, ex-goleiro do Santos, recebeu, todos sabem.

De um lado, o corpo negro do ginasta, de outro os sacos de lixo. Ou melhor, de um lado os corpos brancos dos ginastas, divertindo-se, e de outro o saco de lixo, Ângelo Assumpção.

Lixo, lixão, corpos negros, sacos de lixo – você não precisa estar ligado na CPI do extermínio de jovens negros para perceber que o corpo de Ângelo Assumpção acaba de ser lançado simbolicamente na vala, no lixão.

A ligação simbólica, nós aprendemos, se apoia na estrutura do real. As imagens e os símbolos da rejeição se interpenetram, cruzam-se e precisamos estar atentos aos significados do simbolismo que envolve a comparação feita pelos atletas da seleção brasileira de ginástica. Lugar de negro, principalmente na faixa etária de Ângelo Assumpção, é no lixão. Risos?

A mãe de Ângelo parece que falou alguma coisa. Ângelo não vai falar. Pelo menos, não o que nos interessa. Artur Nory, Felipe Arakawa e Henrique Flores já se desculparam pela “brincadeira”. Na dita brincadeira, os ginastas brancos reafirmaram sua superioridade diante de Ângelo e deixaram claro, também, através da linguagem e das atitudes, que Ângelo representa outro grupo, o do lixo. Procura sua turma, cai fora.

Entre nós é profunda a crença de que a discussão aberta e explícita do racismo deve ser evitada. Constrange e parece não promover avanços nem instituir novas práticas. O fato é que temos, de um lado, a “maldição da cor” e, de outro, temos esforços bem sucedidos para interditar o debate sobre racismo. Na rádio CBN, o bate-papo sobre racismo na seleção brasileira de ginástica olímpica (21.05.2015, programa “Hora de expediente”) levou um pouco mais de dois minutos e camuflou a palavra maldita.

Dan Stulbach referiu-se uma vez ao termo na expressão “...quanto está naturalizado este tipo de racismo na sociedade brasileira, tratado como brincadeira”. Naturalização nesse contexto significa que eventuais penas devem ser atenuadas. O racismo é apresentado como elemento da vida cotidiana – mas para inocentar as pessoas que discriminam. As práticas discriminatórias não seriam percebidas como violência extrema, porque passariam longe da consciência dos autores, pobres vítimas inocentes da “naturalização”. Há cinismo e astúcia na manobra.

No país que fuzila jovens negros sem piedade, as considerações de jornalistas sobre atos de discriminação racial e incitamento ao racismo praticados por jovens brancos (“meninos”, “rapazes”) valorizam a chamada pena “didática”, que seja “um exemplo para que não se repita mais”. Os rapazes vão ficar sem a merenda durante trinta dias.

E Ângelo Assumpção? Milton Jung da CBN disse que “muitas vezes o alvo das críticas acaba não reclamando, porque o fato de ele reclamar ou reagir contrariamente pode gerar uma exclusão daquele ambiente, e quando naquele ambiente a oportunidade que o esporte oferece é a de uma ascensão, etc., de um sonho que você realiza, e você acaba aceitando isso, não reagindo da maneira como você deveria talvez. Mas realmente é muito complexo esse processo”.
Que “ambiente” esse, francamente. Releiam o que disse o Jung: críticas. Ângelo teria sido alvo de “críticas”. Na hipótese de reação, o tal “ambiente” fatalmente o excluirá. O que é exatamente complexo no processo? Que Ângelo não possa suportar a grande pressão do ambiente racista? A desumanização, a coisificação, a negação de suas possibilidades como atleta? O desafio gigantesco de alcançar êxito, numa sociedade cujos processos de dominação destinam-se a negar, manipular, conter e reprimir seu corpo?

Os atletas brancos foram punidos “didaticamente”. O modo como se divertem, o comportamento do grupo, comunica mais que indícios de que se sentem seguros de que compartilham valores e práticas: “outros pensam e agem como nós”.

Uma resistência furiosa com a divulgação do episódio, profundamente contrariada, produz o silêncio e a imobilidade. Os personagens foram todos blindados, o noticiário se esvaziou rapidamente. Silêncio, silêncio, silêncio. Ângelo Assumpção, não sei não, pode estar encerrando uma promissora carreira.
Edson Lopes Cardoso
Jornalista e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo



“A moça do tempo”

Maria Júlia Coutinho é agora um nome nacional e já sabemos que ela prefere ser chamada de “Maju”. Sua presença vem contribuindo para descontrair o ambiente do “Jornal Nacional” na hora da previsão do tempo, de acordo com as “novas” estratégias de reconquista da audiência perdida. E o faz com segurança, numa televisão que impõe severas restrições à participação de pessoas negras.

Elas têm presença garantida na construção de cenários e ambientes, pedreiros, pintores, marceneiros, eletricistas, ou manicures e costureiras, iluminadores, etc. Quando o cenário está pronto e o programa começa, as pessoas de pele escura devem recolher-se. Mas nunca o fazem totalmente, sempre podemos vê-las aqui e ali ou pressentir sua presença.

Lembrem-se de Machado de Assis, descoberto a semana passada numa foto que documentou a missa campal em comemoração ao treze de maio. Recordemos uma cena de seu romance “Quincas Borba” (cap. 51), publicado em 1892.

O almoço já está servido, as personagens se dirigem à mesa e não vimos nada, sabemos que Sofia “apenas tomou um caldo”. Depois do almoço, Sofia, pensativa, ouve o rumor de pratos, o andar das escravas, e perdendo-se “em reflexões multiplicadas”, aborrecida e irritada por causa de episódio da véspera e da conversa com Palha, seu marido, vê, enquanto contempla a paisagem no jardim, “um pobre preto velho, que em frente à casa dela, trepava com dificuldade um pedaço de morro. As cautelas do preto buliam-lhe com os nervos”.

Acrescente-se que o narrador nos informou que a personagem tinha “ficado só”, após o almoço. O que não conta absolutamente para reduzir a solidão de Sofia é o fato de que a casa está cheia de escravos/as, os pretos estão em todo lugar e espalham-se pela paisagem.

Mas nós os veremos pelas frestas da narrativa, pelo resultado de atividades domésticas que garantem o conforto, a alimentação, etc.. Há indícios e registros dessa presença em todo o texto. Vejam também como a presença negra envolve os sentidos da personagem (paladar, audição, visão), e se faz presente nas associações simbólicas. Diante do assédio de Rubião, Palha, que lhe deve muito dinheiro, recomenda cautela a Sofia. A trajetória do casal de arrivistas e as cautelas necessárias de sua escalada social se materializam na paisagem através do esforço do preto velho.

Os mecanismos da narrativa no Brasil estabeleceram assim os fundamentos de uma apreensão refinada do país quase invisível habitado por negros.

Os jornalistas quando levantam da bancada principal do Jornal Nacional para interrogar Maria Júlia sobre as condições do tempo cruzam uma fronteira social. Como a interação com os negros se dá sempre de cima para baixo, pesa no diálogo inusitado o tom adocicado e paternalista. Acho que a história de “ela prefere ser chamada de Maju” entra também por aí.

Na entrevista que fez com a apresentadora Maria Júlia Coutinho (FSP 16.05.2015, C8 Ilustrada), Lígia Mesquita, que assina a coluna “Outro Canal”, lhe fez a seguinte pergunta: “Você é uma das poucas jornalistas negras no ar. É importante estar no principal telejornal do país para isso mudar?”.

Maria Júlia respondeu que uma andorinha só não faz verão e que o fardo é difícil de suportar: “não pode demorar tanto tempo pra ter outra Glória Maria, outro Heraldo Pereira”.

As pessoas, como se sabe, estão intimamente vinculadas a um conjunto de experiências de que são o resultado. O conjunto, extraordinariamente rico e diversificado, da experiência de africanos e seus descendentes no Brasil não interessa aos meios de comunicação (como não interessa aos políticos, etc.). Decorre daí, como bem disse Stuart Hall, esta presença pouca e dispersa, esta visibilidade controlada e regulada.

A demora a que se refere Maria Júlia ( Glória, Heraldo e ela mesma) é a expressão de uma regulação, movimentos demarcados por uma estratégia bem sucedida.
Edson Lopes Cardoso.
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo.




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