Reflexões


Interseccionalidade: uso e comando nas lutas políticas

O teor prático da ferramenta interseccionalidade, pode ser validado como o mais importante instrumento politico e metodológico das classes subalternizadas nesta última década.

Cunhado pela afroamericana Kimberley Crenschaw (2002), a terminologia propicia a verificação do entrelace e interlocução dos marcadores sociais de raça, gênero, classe, orientação sexual, geração, identidade religiosa, dinamizados juntos, por vezes, ao mesmo tempo, em direção à determinada realidade social.

Propicia às/os militantes, na forma de organização e agendamento das suas pautas reivindicatórias, oferecerem aportes epistêmicos, para negros, mulheres, lésbicas, transexuais, jovens, dentre outras populações, utilizando-se da combinação de aprendizados pós-coloniais, feministas e do ponto de vista das mulheres negras.

Na ruptura com a visão inocente do papel político do Estado, a interseccionalidade, é capaz de capturar o racismo institucional enquanto ideologia estruturante tal como é o capitalismo; oferecer como tarefa metodológica a compatibilidade da terminologia racismo institucional com a nomenclatura sexismo institucional, usualmente colocadas nos programas de governos em patamares de importância política distinta, nas quais o segundo termo é complemento nominal do primeiro.

É comum em suas palestras pelo Brasil, Crenschaw ilustrar a respeito do termo interseccionalidade, a partir da situação simbólica de um acidente na rua transversal onde se encontra a mulher negra aguardando socorro político.

Para tal assistência, entretanto, há uma dificuldade do movimento negro em atendimento à vítima, por transferir a atenção política ao segmento de mulheres, esvaziando, assim, a marcação racial.

As feministas, por sua vez, fracassam ao dar socorro à mulher negra devido ao uso de instrumental brancocêntrico e por somente compreendê-la negra e não mulher.

Talvez seja por isto a provocação das feministas negras: “parece que todos os negros são homens e todas as mulheres são brancas!

Não estamos alçando a mulher negra como “a mais coitadinha” da sociedade patriarcal racista. Agora, dentro da estruturação das sociabilidades humanas, a mulher negra, sem dúvida, encontra-se posicionada de forma a ser atingida mais vezes e simultaneamente, por vários elementos identitários constitutivos, capazes de deixá-la a margem de abordagens, de fato, includentes.

O contexto expresso no genocídio da população negra, também pode nos ajudar a ilustrar a importância do olhar interseccional, porque embora as mulheres jovens morram em decorrência do aborto clandestino, ou mesmo alardem a violência doméstica, tais acontecimentos são compreendidos como problemáticas das mulheres e não da juventude ou do movimento negro. No entanto, as mortes dos jovens negros são assimiladas como o biopoder promovido contra a comunidade negra, com suas mulheres negras, jovens, cujas vidas dos filhos foram ceifadas.

É salutar compreendermos que, quando nos limitamos a um único marcador social para responder aos processos dinamizados das opressões, havemos de suprimir a real condição feminina, sobretudo, no tocante aos aspectos raciais e de gênero, pilares ideológicos marcantes numa sociedade sustentada por processos colonizadores.

A feminista negra Patrícia Hill Collins, conhecida pela ineditibilidade de entendimento acerca dos sistemas de opressão existirem antes intercruzados, enfatiza a necessidade de as mulheres examinarem também as suas experiências particulares dentro desse sistema, pois a raça, a classe ou gênero rotineiramente tomam lugar e tempo nas pautas feministas, sem que haja, segundo Collins, a percepção de que essas estruturas são paralelamente interligadas para opressoras e oprimidas. Apesar de darem a impressão de serem categorias universais, representando politicamente todas as mulheres e homens, gênero e classe são categorias aplicáveis meramente a um grupo restrito.


Carla Akotirene é mestre em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (Neim / UFBA)



Preticinha

Acordei hoje com o desconforto confortável dos privilégios a me atormentar. A verdade, é que dinheiro no bolso não resolve as humilhações, mas ajuda muito a manter a coerência das escolhas. Longe do alcance das necessidades, as barganhas podem ser negociadas pela consciência. Para os que tem uma, é fácil posar de consequente, de intransigente com os subornos do silêncio que estão à venda em redações de jornais e gabinetes de Ministérios.

O alvo de tudo é a carne preta. A classe é um escudo fino, mas muito valioso no mercado bélico do racismo. A ameaça da casa-grande é te lembrar que o escudo pode ser removido a qualquer tempo. Que podem te enxergar através dele, que os riscos são generalizados, que essa proteção não te imuniza do destino coletivo dos seus.

A tarefa dos que têm acesso ao escudo do vil metal, é mantê-lo a qualquer preço. Vale fortalecê-lo com pompas acadêmicas e boas maneiras, vale até a tentativa de dissolver o aço pra ver se impregna na pele. Qualquer coisa para se distanciar do campo de guerra onde vivem os pretos e pretas ainda mais desprotegidos. Habitar essas zonas sem guarda, sem vedação nenhuma, sem imunização das demissões ou execuções sumárias de cada dia é sentença insustentável.

Nessas faixas de gaza, brancos empobrecidos assumem o risco de habitar território de preto, local dos massacres e das violações livres de censura. Para os corpos escuros, não há redenção. Sem a virtude da pele branca e a guarida da grana, a sentença do abate está sempre a um passo de sua execução.

Por isso, faço meu discurso contundente como sinal de aliança, enquanto checo o saldo do dia e atualizo o passaporte para eventual necessidade de fuga.

Resistência protegida essa que exercito. Pode bem soar como rebeldia tutelada. Essa que vive do salvamento dos outros, desses pretos e pretas com quem posso me identificar de longe. Vidas que reivindico, mas não acesso. Troca de olhares desconfiadas num beco qualquer.

Mas sei que não estou a salvo e me ressinto. O escudo é parte da liberdade condicional que pode ser revogada a qualquer momento. Sem ele, temo pela vida, pela redução do consumo, pelo emagrecimento das minhas possibilidades já tão limitadas.

Mas confesso, de alguma forma, temo ainda mais pelo vilipendio da honra. Essa que há muito mira os escudos como letra escarlate para, por fim, decretar a morte. A morte imposta como pena necessária quando Palmares explodir sem a possibilidade de mediações.

Medo de ser confundida com esse tipo de traidor vil. Desses que sobem as custas do trabalho de toda a manada e não olham mais pra trás. Medo de ser esse tipo de traidora infiel, com discursos prontos e atitudes rasas.

Resistência vulnerável essa que exercito. Sitiada entre o compromisso da luta e as barricadas frágeis de algum conforto, mesmo que subalterno, de alguma fumaça de blindagem, mesmo que sabida ilusão.

Ana Flauzina é doutora em Direito e pesquisadora associada do Departamento de Estudos Africanos e da Diáspora Africana da Universidade do Texas em Austin (Estados Unidos)



Temores bem fundados

“O que vai melhorar nossa vida é a política.”
Milton Santos (revistazcultural.pacc.ufrj.br)

O artista plástico e escritor pernambucano José Cláudio da Silva, ao se definir como negro, há mais de trinta anos, utilizou as seguintes expressões: “Tenho medo de fardado, tenho medo de rico, tenho medo de lei, tenho medo de doutor” (“Redação sobre minha cor”, Novos Estudos Cebrap, v. 2, 1, p.73-75, abr. 1983).

A definição foi elaborada por quem se percebia, com seus temores, num dado contexto, envolvido por um conjunto de relações e instituições ameaçadoras. Eu sou aquele que, por ser quem sou, temo o poder do dinheiro e da justiça, a força das armas e do prestígio social.

Podermos dizer que, em razão das circunstâncias, a ideia de ser negro se organiza em torno de um imenso temor, que José Cláudio articulou a hierarquias e privilégios. Quem somos? Somos aqueles que, nesse tempo e nesse espaço, temos razão de sobra para sentir medo.

O registro desses padrões de percepção é importante e está ao alcance de qualquer um poder avaliar em profundidade como, nas últimas três décadas, nossos medos se reforçaram e se ampliaram. Ficamos curiosos também para conhecer como José Cláudio conseguiu fazer a organização visual dessa experiência. Sua arte não pode ter ficado imune a essa apreensão de nossas circunstâncias. Vamos conhecer o acervo de José Cláudio da Silva?

No momento em que escrevo há grande receio de que a reforma ministerial mutile definitivamente a Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial). Esse também é um medo antigo. Desde 2003, ano de sua criação, a Seppir convive com o assédio obstinado de adversários e de “amigos” da base aliada, com a insegurança e a imprevisibilidade.

Ao longo dos anos, em todas as turbulências, nas mais diversas conjunturas, rumores disseminavam a insegurança quanto ao futuro do órgão. Parece que já nasceu doente terminal, cujo obituário está redigido em todas as redações.

O motivo alegado de contenção de gastos, face às necessidades do Estado, é insustentável. Até as pedras sabem, na Esplanada, que a boa gestão das finanças públicas não está na dependência da continuidade ou não da Seppir e seu minguado orçamento.

Independente de seu tamanho ou de sua força, de seu dinamismo ou eficiência, a Seppir incomoda. Nós encontramos políticos da base aliada ou não encarando a Seppir do mesmo ângulo favorável a sua extinção, porque estão todos substancialmente comprometidos com a ideia de que aos brancos, por sua superioridade intrínseca, deve caber a captura do Estado.

A existência da Seppir sugere que, na formulação e execução de políticas públicas, o Estado inclina-se a incorporar uma perspectiva inédita. Pouco importa se vai priorizar a fundo o interesse de descendentes de africanos, o que conta é que essa possibilidade se abriu, com algumas conquistas, e isso é inaceitável. A Seppir, portanto, incomoda por sua dimensão político-ideológica e não porque amplia o gasto público.

Estamos sendo arrancados dos ônibus e linchados, o racismo evangélico invade, queima e destrói terreiros de candomblé e umbanda, a política de segurança pública mais consequente espalha cadáveres negros em todo o país – é nessa moldura que devemos buscar apreender os sentidos mais profundos das restrições que se anunciam para a Seppir.

A conjuntura exige de nós que superemos nossos medos de fazer política. Segundo Hannah Arendt, a tarefa e objetivo da política é a garantia da vida em seu sentido mais amplo ( O que é política? 7ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007). Além da ameaça à Seppir, as agressões afetam a continuidade de valores culturais e religiosos e nosso próprio direito à existência. Torçamos para que uma consequência importante dessa conjuntura seja o crescimento de nossa participação política.

Edson Lopes Cardoso é jornalista e doutor em Educação pela USP



E elas, não são mulheres?

A intelectual Sueli Carneiro, em seu artigo sobre Gênero e Raça (2002) já nos trouxe insumos sobre criminalização de determinados perfis raciais, refletindo acerca da culpabilização das negras desde os estupros sofridos durante o período colonial até a responsabilização pelo assédio sexual, pelo tráfico de mulheres, pela violência sexual no trabalho doméstico, dentre outras modernas tecnologias de opressão.

As reflexões da autora auxiliam nossa inquietação política em relação à violência contra a mulher na pós colonialidade. Favorece um olhar em relação ao aumento da criminalização das negras, consequentemente seus aprisionamentos, porém, com destaque à penalização a mais promovida pelo racismo institucionalizado.

A diferença marcante ao depararmos com crimes praticados por mulheres se deve ao fato de, além de menos comprovados, haver maior culpabilização do perfil de mulheres negras, invariavelmente estigmatizadas pelas mídias sensacionalistas.

Trata-se de programas de rádio e televisão dispostos a validar o modelo de segurança pública, cuja seletividade racial usa como mecanismo de poder político, a culpabilidade tácita das mulheres pobres e negras, enquanto retratam as mulheres brancas e das camadas médias como ora inimputáveis, ora inocentadas ou sequer consideradas suspeitas pelos seus crimes sofisticados.

Para o destacado penalista latinoamericano Eugénio Raul Zaffaroni (1998), sistemas penais como o brasileiro funcionam de forma genocida. O delito é construído. O “poder seletivo do Direito Penal elege candidatos à criminalização, desencadeia o processo de sua criminalização e submete-o à decisão da agência judicial”, que segundo o autor, pode autorizar o prosseguimento da ação criminalizante já em curso ou decidir pela suspensão da mesma.

O que nos chama atenção, além das assinaladas evidências de racismo e sexismo do Estado, é termos suficientemente sabido dos custodiados que obrigam companheiras e filhas a ingressarem no sistema prisional com drogas e entorpecentes no ânus e vagina, gerando para elas uma penalização hedionda em relação a outras modalidades de crime.

Aliado a esta circunstância, apesar da Lei Maria da Penha autorizar o Estado a afastar do ambiente de convivência familiar toda e qualquer mulher inserida em contexto de violência, notadamente as lésbicas de ‘arquétipo viril’, (representações de si mesmas afinadas com o macho hegemônico) – espancarem, estuprarem e maltratarem as suas esposas laydes (femininas).

Oprimem cientes da impunidade, do fato de as celas não serem vistas como ambientes domésticos; De ainda, estarem em privação de liberdade e respaldadas do entendimento institucional errôneo de que, na Lei de Execução Penal, a violência contra a mulher encarcerada expressa a indisciplina ou mau comportamento de ambas, vítima e agressora, dos quais a repercussão será no indulto e para a remissão da pena.

Outras violências não visibilizadas ocorrem quando mães, esposas e filhas, não obstante, zelam pela preservação da masculinidade dos seus familiares internos ameaçados de abusos sexuais. São impulsionadas, assim sendo, a manterem relações sexuais com os desafetos desses encarcerados e com agentes penitenciários durante os dias de visitas ou mesmo no período de internação. Quando não, desprenderem demasiados esforços monetários, para pagamentos de suas dívidas.

A prisão, como instância de violência contra mulheres, principalmente às mulheres negras, é um microcosmo de violências amplas, porém, os episódios violentos não provocam os repúdios expressivos por parte dos movimentos feministas, devido não acompanharem a execução da pena, nem conhecerem os monitoramentos cabíveis, a não ser pelos empenhos genéricos dos organismos de direitos humanos.

Se bem que defender a abolição da prisão, dado o seu fracasso e função racial, é simultaneamente defender outro tipo de pena cabível para homens agressores e assassinos de mulheres.

De todo modo, as feministas e os movimentos de mulheres devem aumentar seus investimentos dissertativos e políticos em direção às prisões, pois independentemente das conjunturas democráticas ou tiranas, o racismo e o sexismo institucionais são ideologias estruturantes da sociedade após a escravidão.

Enquanto não mostrarmos nossa civilidade para extinção dos espaços prisionais, depomos contra o fim da violência contra a mulher. Afinal, manter o cárcere é manter o ciclo de violência, é impedir que a vítima saia dos braços do agressor, o Estado.

Carla Akotirene é mestre em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (Neim / UFBA)



As pessoas se incomodam

Para a atriz Fernanda Montenegro, em entrevista no domingo (06.09.2015) a Luís Carlos Merten do Estadão (Cad. 2, C1), a afirmação da negritude foi a causa dos problemas de audiência da novela “Babilônia”. “O resto foi pretexto”, disse a atriz.

O escândalo causado pelo beijo de duas personagens femininas teria servido apenas de cobertura, para distrair a atenção de “uma verdadeira revolução” – a grande quantidade de personagens negros bem sucedidos, as uniões inter-raciais, o elogio da miscigenação. “As pessoas se incomodam”, ela disse.

Se você pensa que a televisão é um mundo que havia afastado esse aspecto insuportável da realidade brasileira ( a presença de negros e negras), um grande elenco negro não poderia deixar de produzir incômodo e mal-estar. O que é mais natural para nós do que ligarmos a TV e não enxergarmos negros?

Cacá Diegues contou o seguinte episódio em sua autobiografia: “Numa reunião para comercial sobre shopping center, a representante do cliente me recitou longo “briefing”. Num comercial de shopping, dizia ela, não podia aparecer dinheiro ou exposição de preços. E sobretudo que não filmássemos nenhum negro, mesmo que em distante figuração. Acreditei que a moça, conhecendo Quilombo, estivesse fazendo uma piada. Mas era isso mesmo, não era permitido aparecer crioulo”. (Vida de Cinema – antes, durante e depois do Cinema Novo. Editora Objetiva, 2014, p. 627.)

Mesmo que em distante figuração. Ou seja, nem a representação de uma figura ao fundo, mera presença, sem participação ou intervenção. Não. Será possível entender a complicada cabeça do (a) brasileiro (a) sem essa negação?

Que fantasia soberba: dinheiro, não; preços, não; pretos, também não. Trata-se, ao que parece, de esconder o que é essencial. Vocês podem imaginar nesse ambiente a tensão criada pelos rolezinhos, lembram-se? Negros na novela provocam, ao que parece, a mesma tensão que os rolezinhos criavam nos shoppings e, segundo Montenegro, acabam constrangendo a audiência.

Tornar possível um Brasil sem preto, convenhamos, pressupõe o extremo domínio de técnicas sofisticadas de exclusão, mas pressupõe também outras disposições e aptidões especialíssimas. No relato feito por Diegues, como vimos, não há nenhuma sofisticação. De regra, há, no entanto, meios mais refinados de fazer prevalecer velhas hierarquias.

Visite a África do Sul. Nos anos 80, os coloridos anúncios de agências de turismo convidavam para uma visita ao país do apartheid. Mas não se falava de apartheid, claro. Os negros desapareciam dos anúncios, que se dividiam em imagens de grandes mamíferos e pessoas brancas em ambientes suntuosos. Quem é capaz de apreender a dimensão grandiosa da realidade subtraída pela ideologia do racismo?

O movimento negro protestou, os anúncios sumiram das revistas. Mas os nossos anúncios aqui no Brasil estavam e estão submetidos ao mesmo principio de negação da realidade. Trata-se de uma recusa sistemática a validar a experiência social dos negros. Afastam-na com desprezo e são muitos os truques de edição a que recorrem para, igual ao que ocorria no apartheid, conseguir descartar a presença da maioria e toda a imensa riqueza e diversidade de seu mundo humano.

Não é fácil, cara, apagar a maioria, pense nisso.

Selecionar conteúdos e imagens, personagens e figurantes, tramas, memórias, conflitos; soterrar acontecimentos históricos e quotidianos. Sacrifícios gigantescos. Pessoas que nunca chegarão a formular nada, nem interpretar, nem dirigir, nem cantar, nem dançar, nem ensinar nem aprender, nem amar, nem odiar, nem criticar, nem tomar emprestado nem emprestar, nem fazer política, nem viajar, nem comprar, nem vender, nem ser preso sem culpa, que não serão torturadas, nem assassinadas. Trata-se de conceber as pessoas negras de um modo absolutamente distinto de como as pessoas brancas são concebidas.

Lembrei-me de um conto de Gilda de Mello e Sousa em que a personagem “pôs-se a imaginar que não existia, não existia” (A visita, 1958). Um sentimento assim poderia provir do contato com uma realidade midiática que sistematicamente negasse nossa existência. Frequentemente é o que ocorre.

Mas precisamos pensar que o descarte da maioria acentua ainda deformações monstruosas no mundo branco. Apreendem-se as pessoas negras, mas como se elas não fossem exatamente pessoas. Elas existem, elas estão aí, mas elas não importam. Simplesmente isso. Seja lá o que elas forem, pessoas ou coisas, elas não importam.

Edson Lopes Cardoso.
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo.



Aprender com Luiz Orlando

O ambiente da luta política contra o racismo, o ambiente de movimento negro, parece também saturado de pessimismo e acusações mútuas. O fato é que todos os lados da disputa se defrontam com emergências assustadoras – cada um se encolhe, cheio de apreensões, na defesa justificada ou não de suas prerrogativas.

Como contribuição modesta à harmonia política, sugiro que se abra um espaço mínimo para considerarmos a figura de Luiz Orlando. Excetuando-se Lélia e Abdias, poucos nomes têm recebido o merecido reconhecimento entre nós. Penso que se deve destacar o modo como Luiz Orlando assumiu suas responsabilidades perante a história do movimento negro e perante sua própria consciência.

Decorridos nove anos de sua morte, sua memória já vai rareando fora dos círculos de cineclubistas. Queria falar um pouco de antes do cinema, do período mais remoto de sua juventude. Para mim, Luiz Orlando foi primeiro “Batista”, um codinome seu em 1968. Fui apresentado a Batista na Biblioteca Pública, na Praça Municipal de Salvador, por Roberto Santos, o “João Luís”. Havia um grupinho que ficava na porta da biblioteca depois que ela fechava, conversando. Jovens em tempos sombrios. Roberto Santos eu conheci num grupo de estudos da Ação Popular, formado no Colégio da Bahia. Fui resgatado a tempo pelo amigo.

Roberto Santos foi decisivo também, mas Luiz Orlando emitia uma luz mais serena, contornava as asperezas do debate com sabedoria. Eu os conheci profundamente amigos, complementares. A questão era que Luiz Orlando assumia responsabilidades especiais com seu entorno de um modo – como dizer?

Para que os mais jovens possam compreender o modo como Luiz Orlando assumia responsabilidades coletivas, basta dizer que ele foi a primeira biblioteca itinerante de que tivemos notícia. Estimulava a leitura, disseminava novidades, emprestava, doava. Doava, isso mesmo, dava, presenteava. Adivinhava seus interesses, percorria sebos e livrarias, desencavava preciosidades. Biblioteca itinerante que não era kombi nem van. Luiz Orlando deambulava, incansável, pelas ruas de Salvador.

Conheço muito sonho de ativista que projeta um destino público para os livros que reuniu com muita dificuldade. Ironildes Rodrigues, para citar um exemplo, vinculado ao Teatro Experimental do Negro e responsável pela alfabetização de adultos, deixou registrado em seu “Diário de um negro atuante” que de seu testamento deveria constar “que o apartamento em que moro seja transformado num centro de estudos, principalmente dos problemas afro-brasileiros, com os 4 mil livros servindo de consulta aos estudiosos ou para os alunos pobres, que não podem comprar os compêndios indicados pelo professor” (revista Thoth, Brasília, n. 3, set./dez. 1997, p. 155).

Biblioteca tem que servir a uma coletividade, acrescentava Ironildes. Sonho meu, sonho seu e dela. Todo mundo sonha sua Saubara, para lembrar Jônatas Conceição, outro encantado. Não sei se as disposições testamentárias de Ironildes foram cumpridas, quero crer que não. Mas Luiz Orlando, desde a juventude, transformou-se em biblioteca pública itinerante e marcou com sua atitude uma porção de espíritos desarvorados.

Nós sempre o encontrávamos entre a Biblioteca Pública (onde hoje é o Sucupira) e o Gabinete Português de Leitura (a biblioteca do Goethe veio depois). Carregar livros era uma ousadia no período e Luiz Orlando personificava o desafio, conduzindo exemplares com os quais exercitava sua fraternidade política, coletiva.

Ele não era tão mais velho, talvez três ou quatro anos. Parecia ter mais porque seu fruto maduro era o estímulo à solidariedade que provocava em nós. Eu emitia algum sinal que ele soube captar e que eu mesmo ignorava a existência. Se eu parecia, a meus próprios olhos, irremediavelmente perdido, o fato é que não estava. Quem sabia disso, quem poderia saber? O certo é que com Luiz Orlando seu desamparo não virava galhofa, você sabia que teria o tempo de que precisava para assumir responsabilidades com o fardo da identidade.

Nos anos 80 em diante, o cineclubista e animador cultural iria levar o cinema e o vídeo para as associações de bairro, as que existiam e aquelas que seu entusiasmo contribuiu decisivamente para que existissem. Estimulou novos hábitos e práticas culturais, articulou pessoas em muitas cidades do país. Minava o controle da informação disseminando livros, filmes e vídeos, formando plateias e produtores, aprofundando a recepção crítica. Acho que temos a chance de renovar nossas práticas, resgatando o exemplo de pessoas como Luiz Orlando do esquecimento coletivo. Axé.


Edson Lopes Cardoso.
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo.



Participação imprescindível

“Não podemos mais consentir que o negro sofra as perseguições constantes da polícia, sem dar uma resposta.” Esse limite foi definido pela carta convocatória do MNU para o ato público de 7 de julho de 1978, em São Paulo. “Contra a opressão policial” é palavra de ordem essencial da entidade, inscrita em seu registro de nascimento.

Mas a denúncia do assassinato de Robson Silveira da Luz, torturado por policiais, e da discriminação sofrida por jovens negros no Clube de Regatas Tietê, foi acompanhada da convicção de que esses casos “não darão em nada”, de que “serão mais dois processos abafados e arquivados pelas autoridades”.

Quantas experiências dessa natureza foram acumuladas pela população negra e suas centenas de entidades e organizações espalhadas pelo país? Uma experiência individual e coletiva intensa, dramática, nunca validada e reconhecida pelos governos, autoridades judiciais, meios de comunicação, formadores de opinião, partidos políticos.

O racismo, ali no limite entre vida e morte, como parte essencial do que os negros conhecem como sua realidade cotidiana. “A maioria da população tem medo da PM” é o título de reportagem recente da “Folha de S. Paulo” (31/07/2015, p. B 8) e refere-se a experiências que foram vivenciadas e acumuladas por descendentes de africanos no Brasil, desde muito tempo, agora finalmente reveladas aos leitores pelo DataFolha!

Ainda em 1978, o advogado Virgílio Luiz Donnici publicava o artigo “Criminalidade e Estado de Direito” na revista Encontros com a Civilização Brasileira (v. 5, novembro de 1978, pp. 201-235), de que extraio o seguinte trecho:

“Outro aspecto da criminalidade tradicional é que as vítimas não procuram a polícia, com a convicção pacífica de que ela não resolverá a situação, o que está a merecer uma ampla pesquisa para esclarecimento da opinião pública, sob a forma da indagação seguinte: Polícia – protetores ou opressores?”

A pesquisa do DataFolha em 2015 e a pesquisa proposta por Donnici em 1978 mostram como o entendimento de uma determinada realidade é sempre complexo e multifacetado. As pessoas amedrontadas e oprimidas em seu cotidiano mais trivial, ou trucidadas nos cárceres e em chacinas nas madrugadas sombrias, podem ter dificuldades não de compreender a realidade, mas de aceitar a extraordinária simplicidade e superficialidade com que sua realidade será apreendida pelos outros. Ainda mais quando esses outros são protegidos pela polícia, não é verdade?

De maneira constante, ao longo de muitas décadas, os governos vêm falhando em garantir o direito à vida da população negra. Nossa cultura e nossa subjetividade transmitem essa aberração há gerações: a vida dos negros é vida sem valor. A questão que quero levantar é a seguinte: a experiência que decorre dessa rejeição extrema, por acaso senta-se à mesa de negociação, em que se afirma buscar soluções (programas, políticas, estratégias) para reduzir as altas taxas de homicídio da juventude?

Como devemos entender o apagamento de uma trajetória histórica singular, de uma riqueza tão inestimável de consequências críticas, certamente incômoda e perturbadora? Se as reuniões preparam a ação política efetiva, como prescindir da participação da população negra, de suas entidades e organizações, de suas fontes intelectuais e políticas?

Não é um paradoxo que quem se omitiu, sempre cúmplice, saiba agora o que fazer, enquanto os que vivenciam condições materiais, concretas e insubstituíveis, devam calar-se e aguardar, renunciando a contribuir para a solução dos problemas que sua realidade expõe todos os dias e que implicam em sua sobrevivência e continuidade?

A Declaração e o Programa de Ação de Durban, que estão completando 14 anos, pareciam ser um marco no reconhecimento do papel fundamental desempenhado pelas organizações negras. Mas ninguém se refere mais a Durban.

A contragosto, aqueles que ousam abordar o tema das altas taxas de homicídio de jovens na grande mídia admitem que os negros sejam as principais vítimas. Uma percepção não exatamente aguda de uma dimensão do real ostensiva. Embora estejamos ainda muito distantes de uma tomada de posição política diante do racismo e das desigualdades raciais, significa algo. Mas poderia significar muito mais.

No fundo, o racismo permanece secundário e a frase que acentua a cor das vítimas, que deveria significar que os assassinos foram educados para considerá-la uma justificação suficiente para suas condutas bárbaras, como parte essencial de larga tradição cultural, vai sendo assimilada pelo seu caráter exclusivamente formal.

O fato evidente, finalmente admitido, de que os negros são as vítimas principais da violência é ou não uma experiência social, política, psicológica dos negros a ser considerada?

Ao reconhecer a cor das vítimas, não nos sentimos obrigados a priorizar o enfrentamento do racismo nem a participação política dos negros? Que reconhecimento é esse, afinal? A questão central é a recusa sistemática a considerar os negros como parte da solução.
Edson Lopes Cardoso.
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo.



A insignificância e o STF

Uma sandália de borracha no valor de R$ 16. Quinze bombons artesanais no valor de R$ 30. Dois sabonetes líquidos íntimos, no valor de R$ 48. Estes foram os produtos furtados por cidadãos brasileiros que foram a julgamento em nossa Suprema Corte no último dia 03 de agosto. No primeiro caso – das sandálias – o réu era reincidente, ou seja, já havia sido condenado por outro crime quando do furto das sandálias. No segundo – dos bombons artesanais – o crime era qualificado, o réu escalou um obstáculo para furtar, e, no terceiro – dois sabonetes – teria havido concurso de agentes, ou seja, mais de uma pessoa praticando o crime, o marido teria feito barreira para mulher furtar.

O objetivo da discussão no Plenário do Supremo Tribunal Federal era decidir se nestes casos – com as circunstâncias apresentadas – era cabível ou não a aplicação do princípio da insignificância, segundo o qual o direito penal não deve se ocupar de fatos pouco relevantes como subtração de pequenas quantias. Trata-se de um princípio reconhecido no direito brasileiro que busca impedir que o direito penal incida sobre temas de pouca lesividade como o furto de objetos de pequeno valor. Entende-se que estes casos devem ser tratados por outras áreas do direito, não pelo direito penal.

A discussão foi longa e os ministros recorreram a grandes e qualificadas teses. O doutor Luís Roberto Barroso, isolado, defendeu que por se tratar de “furto insignificante” o adequado seria considerar o fato materialmente atípico – ou, em bom português, fato que, em função da realidade (pequeno valor do objeto furtado), é irrelevante ao direito penal e que, mesmo sendo definido legalmente como crime, materialmente deveria ser tratado como ilícito civil (onde pode ser definida a obrigação de que o acusado restitua o bem ou mesmo que o ofendido peça indenização). O Ministro não estava aprovando o furto, mas, dizendo que, pelas circunstâncias, seria mais adequado que a questão fosse resolvida longe da esfera penal.

Os argumentos levantados foram muitos e muito qualificados: alegou-se que o sistema penal brasileiro não ressocializa e que, pelo contrário, apenas produz novas e mais graves violências; que é dramática a situação de superpopulação carcerária e que portanto não era razoável “mandar para cadeia” uma nova horda de pretos-pobres por fatos tão banais ou ainda a comparação com casos de sonegação em que, mesmo mediante a lesão ao erário, evita-se o acionamento do sistema penal quando não se excede o valor de R$ 20.000,00. Em outras palavras, o ministro demonstrou numa sólida argumentação que é desproporcional mobilizar o sistema penal em ilícitos como estes.

Contudo, tal entendimento não foi majoritário. Baseados num ideário geral de medo e crença excessiva na punição, os demais ministros acordaram que a Corte não deveria fixar uma tese – dar uma decisão geral sobre o tema - e que cada juiz, caso a caso, deveria analisar se era ou não possível aplicar o princípio da insignificância. Ou seja, muito “pudor” para reconhecer que o “insignificante” é “insignificante” e que, portanto, não é cabível pôr em risco a liberdade – esta sim a mais significante das garantias – em função do que é, como já verificamos, insignificante.

É um jogo de palavras que não serve para cuidar da vida e daquilo que nela é fundamental. Como em outros momentos da história das instituições brasileiras o medo interdita a realização do que é evidente. Em nome da defesa da ordem perde-se a chance de fazer justiça. É um velho cacoete nacional que durante anos adiou o fim da escravidão, que criou contenções para que os negros ocupassem lugares de prestígio e de poder e que tem interrompido vidas de jovens brilhantes com argumentos de guerra as drogas por medo de que se corrompa a família nacional. É o medo que nos paralisa.

A decisão do STF, que pode ser definida como mediana diante da tragédia diária do punitivismo nacional, revela como as nossas instituições recuam diante de grandes possibilidades de avanço. Ao invés de firmar uma decisão ousada e ajustada com o que há de melhor na doutrina sobre direito penal o Supremo Tribunal Federal escolheu uma saída moderada que frustrou a todos os que cotidianamente se debatem diante do morticínio das cadeias superlotadas, do judiciário com pilhas e pilhas de prisões provisórias sem analisar e do Ministério Público que, sem possibilidades de intervenções mais efetivas e qualificadas, termina sucumbindo ao discurso da punição, punição, punição.

Num país em que mais de cinquenta mil pessoas são mortas por ano e mais meio milhão de pessoas estão presas – uma grande parte sem julgamento ou já tendo cumprido a pena – é de espantar que o furto de uma sandália de borracha; quinze bombons artesanais e dois sabonetes líquidos íntimos não sejam, de pronto, declarados como insignificantes.

Felipe da Silva Freitas é mestre em direito pela Universidade de Brasília e membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana / BA.



Antônio Cruz/Agência Brasil

A fatura

Parece haver consenso de que o tempo da cobrança chegou. O preço elevado da fatura aquece a troca de acusações. Ninguém se dispõe a assumir a responsabilidade pelo acúmulo da dívida. De um lado, o espetáculo degradante da sombra de uma esquerda que se dissipou. A manutenção no poder passou a se impor na ordem do dia, a lógica da propina e do desvio se instalou no pragmatismo da governança possível e vemos o resultado indisfarçável em números constrangedores jorrando de poços de petróleo e negociatas espúrias.

De outro, temos um filme tipo B promovendo ganância disfarçada de moralidade. A agenda requentada dessa direita, que faz o estômago embrulhar, está em alta. Mantenedores das estruturas corruptas bradando sem constrangimento a necessidade de investigações seletivas, delações que os poupem dos esquemas e o apagamento da memória de que esse sistema corroído é herança de tempos em que seus pares habitavam o poder central.

Diante do cenário limite, as tensões escalam. A crise econômica encurta os horizontes do consumo e expõe o fato de que os avanços das políticas sociais nunca foram capazes de abalar as estruturas dos privilégios. Na hora de apertar o cinto, é o trocado conquistado a árduas penas pelos que estão à margem o primeiro a sumir de circulação.

Mas a crise não é analisada de suas entranhas, passando a ser exposta como a corrosão da estabilidade financeira e da escalada da violência contra a classe média que se ressente: por ter de reduzir o número de vistos nos passaportes, passar da escrava constante à diarista eventual, olhar à espreita pelo carro a espera do próximo sequestro relâmpago. Desse ângulo estreito, os sons de panelaços em bairros abastados e passeatas com público vip passam a ser a imagem da resistência popular à bandalheira institucional.

Enquanto isso, a vida segue seu curso para os que tem o terror de Estado como resposta patente desde os tempos das caravelas. Com um Executivo de joelhos e um Judiciário duvidoso, o Legislativo vira o eco para a resposta derradeira: a conta vai mais uma vez ser quitada no lombo da negrada. Enquanto se arranjam os termos das negociações por cargos, para se comprar os silêncios, a agenda do extermínio vai avançando sem constrangimentos.

A Juventude negra, pintada como algoz, garante o imaginário da segurança fraudulenta que se propaga. A discussão dos autos de resistência, esse salvo- conduto policial para as execuções sumárias de cada dia, é afastada pelo apetite guloso da redução da maioridade penal. A prescrição é simples: prender no atacado e matar no varejo. As ruas recebem o recado e passam à ação: a temporada dos linchamentos está aberta. O homem negro amarrado no poste dá o recado final de que o boleto será enfim liquidado.

A decadência do Brasil é desenhada como a necessidade de se substituir as elites brancas governantes e de se moer a carne negra para o reestabelecimento da ordem. Nessa dinâmica pervertida, a crise cobra a fatura dos envolvidos no processo dentro dos parâmetros morais e políticos mediados pelo racismo.

Na polarização radical das elites, o jogo passa pela perda de espaços de poder, constrangimentos públicos e processos arrastados por anos com o horizonte da prisão simbólica de alguns. No quotidiano negro, os centavos são cobrados pela luta pela subsistência que se esvai com os empregos, pela perda das perspectivas da educação que se interrompe, pelos julgamentos sumários que aceitam a vida como moeda barata nas transações parlamentares e no imaginário genocida que se aprofunda sem censura nos lares de bem.

Ana Flauzina é doutora em Direito e pesquisadora associada do Departamento de Estudos Africanos e da Diáspora Africana da Universidade do Texas em Austin (Estados Unidos)



Do racismo cordial ao genocídio simbólico

Em setembro de 2012, após a chacina de seis jovens pretos e pardos em Mesquita, na Baixada Fluminense, o jornal “O Globo” (edição de 13.09.2012, p. 18) admitiu em editorial, cujo título era “Está em curso um quase genocídio contra jovens”, que “A ideia de o Brasil ser um país de população de baixa idade está sendo mudada pela própria dinâmica demográfica e também pela força das armas”.

Com o uso do advérbio (quase) o editorial sinalizava que estava realizando, a contragosto, um movimento de aproximação. Na sessão da Câmara na última quarta-feira (15.07.2015), durante a leitura do relatório final da CPI de Homicídios de Jovens Negros e Pobres, o reconhecimento da palavra genocídio se fez com os mesmos constrangimentos e cautelas do editorial de “O Globo”, que omitia também, por supuesto, a cor dos jovens assassinados.

A relatora da CPI, deputada Rosângela Gomes (PRB-RJ), disse que foi bastante questionada nos corredores, a respeito do emprego de termos tais como racismo e genocídio. Termos estes considerados muito fortes pelos sensíveis deputados que a assediavam nos corredores. Quero crer que lhe foi sugerido um pouco menos, o quase da fórmula de “O Globo”.

Até mesmo porque o quase parece definir nossa especificidade histórica, que sempre modificou para menos o que presumivelmente apareceria em sua plenitude em outros países. Sempre tivemos, por essa leitura, menos racismo do que os outros. A atenuação alcançou seu grau máximo com o emprego inusitado do adjetivo “cordial”. Aqui alcançamos a perfeição ideológica, ninguém poderá negar isso, com a expressão “racismo cordial”. O adjetivo não exatamente determina o substantivo, mas o subordina e lhe extrai as entranhas desumanizadoras. Lembro-me das lições de minha infância remota: “o adjetivo modifica o substantivo”. Ah, criança, não queira saber quanto!

Aplicando as mesmas regras de transformação, oriundas de nossas especificidades históricas, a leitura do relatório da CPI da Câmara revelou ao mundo o “genocídio simbólico”!

Antes da votação do relatório, a deputada Mariana Carvalho (PSDB-RO) externou, no que foi seguida por muitos outros companheiros de CPI, as condições de validação do termo genocídio. Em confrontação com sua dimensão real e material (“muito forte”), o temo genocídio se atenuava ali e adquiria uma conotação “simbólica”, e era essa dimensão que ela e seus colegas se predispunham a aprovar.

Redimido pelo adjetivo, o substantivo genocídio acabou causando menos frisson que “gênero” e “orientação sexual”, varridos inapelavelmente do relatório. Na barganha, a homofobia de pastores, delegados e militares, alarmada ao extremo, acabou dando passagem ao “genocídio simbólico”, considerado um mal menor.

A leitura do relatório firmou também, ao que parece, nossa disposição de prolongarmos indefinidamente a busca por arranjos institucionais, supostamente indispensáveis para por fim ao assassinato de jovens negros. Nesse debate, inclinamo-nos a perseguir o infinito. No entanto, projeções de PEC”s, comissões e fundos não conseguem mais nem mesmo criar um horizonte de expectativas, ainda que rebaixadas.

Sobre o alcance dos pronunciamentos e debates travados no interior da comissão, mais uma vez os meios de comunicação se defrontaram com questões que afetam diretamente a população negra e fizeram suas opções. Nenhum veículo da grande mídia noticiou os trabalhos da CPI, nem as conclusões de seu relatório.

Compare a reação da mídia norte-americana aos eventos recentes envolvendo o assassinato de pessoas negras e seu repúdio pelas comunidades. Analise e compare também o impacto, o espaço e o prestígio do espaço ocupado pelo noticiário desses mesmos eventos e reações na mídia brasileira. Até o “Jornal Nacional” produz manchetes nas quais policiais atiram em pessoas negras. Nos Estados Unidos, claro.

Veículos que, por decisão de seus proprietários e editores, não aceitam noticiar a cor da vítima no Brasil, o fazem, contudo, na primeira página se o fato ocorreu em um país caracterizado como racista, em oposição ao nosso, reino de bem-aventurança etnicorracial. O editorial da Folha de S. Paulo (“Amarildo, 43”, em 03/08/2013) que se referiu a Amarildo, trucidado no Rio, é um clássico no gênero. Amarildo, para a Folha, era ajudante de pedreiro e tinha quarenta e três anos. Sua cor não era uma variável a ser levada em consideração, assim como sua extensa rede de familiares no morro, etc.

A questão central no tema do enfrentamento ao racismo e no fim das práticas homicidas contra a população negra foi, de todo modo, escamoteada ou subdimensionada na apresentação do relatório da CPI. A questão é: uma população ameaçada em sua continuidade pode reverter a tendência de extermínio sem tomar parte nas decisões que afetam sua vida de modo tão trágico e decisivo? Sem o fortalecimento de sua organização política, sem o empoderamento de suas comunidades?

Quais as medidas concretas sugeridas no relatório da CPI para estimular a participação da população negra? Reconhecemos suas entidades e instituições, suas pautas reivindicativas, fortalecemos as estruturas comunitárias com participação negra?

Se as soluções propostas não contarem efetivamente com a participação da população negra desde seu nascedouro, o extermínio começa nesse ato primeiro de exclusão política. Mal ou bem intencionado, não importa, ninguém deve ser porta-voz nem arrogar-se o papel de testemunha das atuais condições de sobrevivência da população negra. Assim, com essa usurpação rotineira, tanto à esquerda quanto à direita, nossa presença histórica transforma-se numa farsa e não há perspectivas de mudança nas estruturas de poder, das quais os negros são sumariamente excluídos. Há, portanto, evidências indiscutíveis, finalizado o trabalho da CPI, de que os assassinatos continuarão a acontecer impunemente em todo o país.
Edson Lopes Cardoso.
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo.




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